Osvaldo Meira Trigueiro
Introdução
A
possível origem da festa da Bugiada e Mourisqueiros
A
filha do Reimoeiro, o rei mouro, estava muito doente desenganada pelos médicos
da corte e como havia conhecimento que a filha do rei cristão, o Velho da
Bugiada, tinha sido curada pela milagrosa imagem de São João, o Reimoeiro
convida o Velho da Bugiada para um jantar e pedir-lhe a imagem de São João por empréstimo
na tentativa de curar a sua filha. Mas, o Velho da Bugiada, desconfiado, não
aceita o convite com medo de ser uma armadilha do Reimoeiro para ficar de posse
da imagem milagrosa. O Reimoeiro desesperado declara guerra ao Velho da Bugiada
e tem início uma longa batalha pela posse da imagem milagrosa de São João, cujo
confronto festivo acontece no dia 24 junho.
O mundo pelo avesso ou da desordem social
Sobrado,
no dia de São João, torna-se um grande terreno de batalhas de enfrentamento dos
dois grupos festivos “antagônicos” dos Bugios e Mourisqueiros que percorrem as ruas da freguesia com suas músicas
e danças típicas, mas o confronto entre os grupos só acontece já no final da
tarde na batalha da tomada do castelo dos Mourisqueiros pelos Bugios. Essa
batalha é um acontecimento constituído de campo simbólico polarizado entre cristãos
e mouros onde as relações de força são estabelecidas festivamente por diversos
protagonistas que participam das celebrações em homenagem a São João. Entre os
protagonistas dos festejos populares destacam-se o Reimoeiro dos Mourisqueiros,
o Velho dos Bugios, o Cego, o Sapateiro e sua mulher, que é um homem vestidos
de trajes femininos, o Cobrador dos Direitos, o Semeador, a Serpa, o Advogado e
o desfile da Crítica que será motivo para uma análise em outro estudo. Bugios (cristãos)
e Mourisqueiros (mouros) são um exemplo extraordinário da sobrevivência de bens
culturais medievais na festa de São João em Sobrado, onde quase tudo acontece
ao contrário, da inversão dos valores dos papéis sociais, que são características
das celebrações religiosas e das festas carnavalescas na Idade Média. Na
Bugiada e Mouriscada observamos vários eventos que estão vinculados a festas
cujas origens são tão antigas quanto a expansão do cristianismo na Península
Ibérica. Portanto, no São João de Sobrado o mundo fica pelo avesso ou quase
tudo acontece ao contrário e tem suas origens nas tradições milenares do Velho
Mundo, onde nos campos de disputas entre o sagrado e o profano prevalece o espírito
carnavalesco e sempre a vitória dos cristãos sobre os mouros (AMORIM, BENJAMIN,
2002).
O
Grupo dos Bugios
Representa
os cristãos, tem grande número de participantes sem restrições de idade e de
gênero, são mascarados e suas indumentárias são multicoloridas com
predominâncias das cores vermelha, azul, verde e laranja. Desacatam-se pelo uso
de capa, chapéu de abas largas ornamentados com fitas coloridas, na altura da
cintura uma faixa larga de cor vermelha, os calçados são diversificados, as
meias são longas até a altura dos joelhos com listas de várias cores e guizos
pendurados. O grupo sai em cortejo pelas ruas de Sobrado em duas longas filas
com cerca de 800 brincantes comandados pelo Velho da Bugiada, que
é o seu Rei, fazendo muito barulho para divertir o público com gritos, saltos e
algazarras. O Velho vai na frente, entre as duas filas, usa indumentária
diferente dos demais brincantes estimulando o grupo com palhaçadas e
transgressões. Usam luvas brancas, nas mãos levam castanholas, rosas, bichos de
pelúcia, bonecas, buzinas, grandes colheres e garfos de madeira, alho porro ou
martelinho, chifre de boi, rabo de raposa e de coelho, e tantos outros objetos
conforme a criatividade de cada brincante. O grupo é acompanhado por uma
orquestra de cordas, violões e violinos, com forte marcação rítmica das
castanholas, dos guizos e sons dos brincantes imitando animais (PINTO,1983 e LOPES,
2008). O grupo que representa os cristãos é transgressor da ordem social, com
atitudes obscenas e “diabólicas” provocando risos e alegria na multidão das
ruas de Sobrado quando passam aos gritos e pulos. A Bugiada, assim como a Mouriscada,
seria um ressignificado das antigas encenações do Mistério da Paixão ou do Mistério de São João, onde era permitido que
as pessoas mascaradas e vestidas de diabo corressem pelas ruas das aldeias em
total desgoverno nos dias que antecediam as festas de São João ou as
festas de Verão no hemisfério norte.
Injúrias e obscenidades faziam
parte do seu repertório: agiam e falavam contrariamente às concepções oficiais
cristãs, como aliás o exigia o papel. Faziam em cena um barulho e uma confusão
extraordinária, sobretudo se se tratava da “grande diabrura”. Daí a expressão
“fazer o diabo a quatro” Esclareçamos de passagem que a maior parte das
imprecações e grosserias onde figura a palavra “diabo”, deve a sua aparição ou
evolução aos mistérios cênicos (BAKHTIN, 1993, p. 232).
Portanto,
Bugios (cristãos) é o grupo com maior número de brincantes que representam os desordeiros,
os transgressores da ordem social, provocadores e desobedientes das regras comportamentais
do que seria um “bom cristão”. Os brincantes do grupo dos Bugios não participam
diretamente da missa solene e nem da procissão em honra a São João, são os Mourisqueiros
que participam da procissão e conduzem a desejada imagem milagrosa de São João.
Ou seja, durante quase todo o dia da festa os Bugios são os transgressores e fazem
“o diabo a quatro” pelas ruas da vila de Sobrado. É mais uma demonstração que
na festa da Bugiada e Mouriscada quase tudo acontece ao contrário ou o mundo
pelo avesso.
O
Grupo dos Mourisqueiros
Representa
os mouros infiéis, é constituído de soldados jovens solteiros, cuja tradição
devem gozar de boa saúde para enfrentar os mouros no campo de batalha, não usam
máscaras, têm uma formação de característica militar com duas filas em número
par e entre as filas fica o Reimoeiro comandante do grupo que usa trajes
diferenciados dos soldados. Os dois figurantes – soldados – que ficam na frente da fila são denominados de Guias, os que ficam atrás das filas são os Rabos e os do meio recebem a denominação de Meios. É um grupo disciplinado que obedece às ordens do comandante,
desfila ordeiramente pelas principais ruas de Sobrado com as espadas em punho
como se estivesse em posição de defesa. Suas indumentárias, coreografias e
ritmos assemelham-se à formação dos pelotões militares. O grupo participa
diretamente das celebrações religiosas dentro e fora da igreja, na missa solene
e na procissão conduzindo o andor da imagem de São João. Durante toda a festa é
acompanhado apenas por um músico, o caixeiro, que marca o ritmo tocando como se
fosse uma marcha militar. Uma das características do grupo Mourisqueiros é ser
constituído exclusivamente por homens jovens, não há participação de mulheres
nem crianças. Essa tradição seria uma ressignificação dos antigos sistemas das
guildas – corporações dos mestres dos ofícios – sociedades secretas com o objetivo de viajar por diferentes
localidades da França, o denominado – tour de France – para sistematização de
políticas em defesa da classe trabalhadora na organização de greves e
“protótipos de sindicatos”. Ou seja, “Os oficiais franceses, por exemplo,
tinham os seus “compagnonnages” ou
“devoirs”, cujos membros ativos consistiam principalmente de solteiros
entre 18 e 26 anos de idade”. Essas organizações espalharam-se na Europa
divulgando as suas ideias através de rituais secretos nos trabalhos ou nas
festas dos seus padroeiros e padroeiras (BURKE,
1989, p.
66). Os Mourisqueiros, não participam das encenações obscenas e transgressões
da ordem social, têm como objetivo executar manobras estratégicas militares
ofensivas na tentativa de roubar a imagem milagrosa de São João em poder dos
Bugios e prender o seu rei, Velho da Bugiada, no castelo.
A
Cobrança dos Direitos
A
Cobrança dos Direitos é uma das paródias burlescas da festa, que ocorre no
início da tarde do dia 24 de junho, no intervalo das batalhas entre os cristãos
e mouros em que um dos brincantes da Bugiada, escoltado por outros bugios,
montado ao contrário no burro passeia no meio da multidão representando, de
forma satírica, um cobrador de direitos ou de impostos. Acompanhado por Bugios e
outras pessoas, numa verdadeira desordem, o cobrador vai aos estabelecimentos
comerciais como as barracas, tascas e restaurantes que vendem comidas e bebidas
nas ruas de Sobrado no perímetro da festa, para recolher os impostos “devidos”.
O cobrador traz na mão um grande livro velho com estampas de mulheres nuas e
uma caneta para anotar os pagamentos recebidos e usa como tinteiro o ânus do
burro para molhar o bico da caneta. É uma cobrança simbólica de arrecadação de
comidas e bebidas feita com muita algazarra e desordem para animar a festa dos
brincantes.
Geralmente só vão às tendas de
doces, de comidas, e sobretudo de bebidas. Se o tasqueiro arma em mal-humorado
e insolente, os Bugios “pintam o diabo”, viram tudo de pernas para o ar,
fazendo grande “chinfrim”. Se lhes dão vinho, fazem que bebem (e muitos bebem
mesmo), derramando-o pelo peito abaixo; se lhes dão cerveja, “agitam-na bem
antes de usar” espalhando a espuma pela cabeça dos circunstantes (PINTO, 1983,
p. 19).
A
cobrança dos direitos ou impostos é uma manifestação do espetáculo popular que
vamos encontrar em diferentes festas religiosas e profanas como uma das
representações simbólicas de críticas aos impostos abusivamente cobrados pelos
poderes públicos, prática essa que vem desde a Idade Média aos dias atuais e
sempre contestada pela maioria da população. E como o mundo fica pelo avesso em
Sobrado no período da festa, o espetáculo Cobrança dos Direitos é mais uma das
encenações satíricas, cômicas, burlesca e que faz a alegria da multidão
aglomerada no território do Largo do Passal, que corre de um lado para o outro
atrás do cobrador de impostos montado ao contrário no burro segurando o rapo
como fosse o cabresto.
A
Lavra da Praça Invertida: semear, gradar e lavrar
Quando
finaliza o entremeio da Cobrança dos Direitos, mais uma encenação do teatro de
rua, vem em seguida a da Sementeira Invertida apresentada por personagens
mascarados, com roupas velhas e surradas imitando o pobre que trabalha no
campo. Os trabalhadores rurais figurantes vão jogando as sementes para o alto
num movimento de semeadura invertida como se estivessem plantando no espaço e
não na terra. Os brincantes da Bugiada vão abrindo passagem no meio da multidão
para que a encenação do espetáculo da entrada do arado cenográfico, puxado por
burros dando voltas rápidas bem próximo dos espetadores que correm, pulam,
gritam para não serem atingidos, mas ao mesmo tempo vibram, dão risadas de
demonstração de alegria e satisfação de participar da encenação do mundo pelo
avesso. A Sementeira Invertida é uma encenação no entorno do Largo do Passal
que representa de forma satírica as origens das antigas festas cíclicas agrícolas
do início de verão no hemisfério norte.
A
Dança do Cego ou Sapateirada
É
um dos momentos mais esperados da festa que acontece nas mediações do adro da
igreja na presença de um grande público. A montagem do cenário é realizada por
alguns brincantes da Bugiada que na rua em frente à porta principal da igreja e
da casa paroquial constroem um charco com lama e capim. É um espetáculo cujo
enredo conta a história de um cego e seu guia, de um sapateiro e sua mulher
(personagem masculina vestida de mulher), com enredo e tramas onde prevalecem o amor, a traição, o ódio, o risível, o cômico, o grotesco e o
obsceno que são interpretações tradicionais nas construções dramáticas do
gênero teatral popular de rua encenado nos adros das igrejas e praças públicas
no período das antigas festas de Corpus-Christi, de São João Batista, de santos
e santas padroeiros e padroeiras de algum lugar e nas festas de carnavalização
na Idade Média. A dança do cego e do sapateiro é mais um exemplo da
ressignificação dos espetáculos encenados nas antigas festas de São João na
passagem do solstício de verão com enredos que continuam conquistando
importantes públicos nas festas tradicionais populares no contexto da sociedade
midiatizada pela globalização cultural com as fortes marcas culturais da Idade
Média na Idade da Mídia.
Essa festa adotava uma forma
carnavalesca em algumas comunidades que tinham São João como santo padroeiro.
Era o caso, por exemplo, de Chaumont, na diocese de Langres, onde as semanas
que antecediam a festa eram dedicadas ao “desgoverno”, organizado, ou antes,
desorganizado por demônios. Os demônios, um tanto parecidos com os “caldeus”
russos, atiravam fogos de artifício na multidão, corriam pela cidade nas noites
de domingo, aterrorizavam o campo e cobravam taxas no mercado (BURKE, ob. cit.,
p. 218-219).
No
Largo do Passal, local onde é encenada a dança do cego, concentra-se uma
multidão para assistir as travessuras e algazarras de alguns brincantes da
Bugiada que atuam como coadjuvantes do espetáculo protagonizado pelo cego e seu
guia, pelo sapateiro e sua mulher (homem vestido de mulher). Nas festas da
piedade popular, na Idade Média, as corporações de ofícios e seus mestres
tinham um importante papel na organização, na realização das celebrações
religiosas e profanas, inclusive com destaques nas procissões conforme a
posição hierárquica de cada um na comunidade. As corporações tinham os seus
santos padroeiros, rituais específicos transmitidos de geração em geração para
manter as tradições do ofício e, quanto mais especializado o trabalho, o mestre
e os seus aprendizes tinham posições privilegiadas no seu grupo social. O
sapateiro era um profissional que tinha uma vida social respeitada na
comunidade, com um nível financeiro e cultural acima da média, geralmente sabia
ler e escrever e por esses motivos admirado pelas moças mais cobiçadas da
sociedade. Na Idade Média as narrativas sobre os feitos dos sapateiros como
grandes mestres eram cantadas e contadas nas redes de comunicação orais – mnemônicas
(ZUMTHOR, 1993) – representadas nas peças teatrais nas ruas, nas praças e o seu
personagem quase sempre era um dos heróis das histórias.
Os sapateiros aparecem como heróis
também na Europa continental; na famosa canção folclórica francesa Le petit cordonnier, é o sapateiro que
fica com a moça tão disputada. Sobrevivem canções e estórias germânicas em
louvor à sapataria; da mesma forma os skomakarvisa
escandinavos, isto é, canções de trabalho dos sapateiros, e a Pomerânia
polonesa registra o szewc, dança do sapateiro
(BURKE, ob. cit., p.65).
Os
sapateiros se envolviam na política, com opiniões religiosas, às vezes
contrárias a pregações oficiais da igreja e por esses motivos alguns sapateiros
eram perseguidos ou pagavam até com a própria vida por defender seus pontos de
vista e suas profecias, como o caso do famoso sapateiro e profeta português de
Trancoso, Gonçalo Anes Bandarra que viveu no século XVI (BURKE, ob. cit., p 65.).
Ao contrário do sapateiro os cegos eram andarilhos, pedintes, vistos como artistas
vagabundos, como malandros e que sempre davam um jeitinho para conseguir seus objetivos.
Cantores e improvisadores de versos que se apresentavam nas feiras, nas festas
e nas portas das igrejas para ganhar um pouco de dinheiro, geralmente
analfabetos, não tinham grande prestígio na sociedade, quase sempre eram pobres
apesar de serem grandes artistas e com a sua arte agradarem um determinado
público. Muitos desses “artistas-vagabundos” parecem ter sido cegos. “Na
Espanha, o nome usual para um cantor de rua costumava ser cego” (BURKE, ob. cit,. p.123). Nos contos, nos romances e na
literatura de cordel, que vem desde o período medieval até os nossos dias, é
possível encontrar diferentes narrativas, intermediadas por esses ativistas culturais
mediadores nas redes folkcomunicacionais importantes acontecimentos de época
contados por cegos nas feiras, nas festas e portas de igreja no Nordeste brasileiro
(TRIGUEIRO, 2008, 2019). O pesquisador
brasileiro Silva (1977), num importante estudo dos cantos e contos populares
faz um percurso profundo sobre o cego como narrador de histórias, cujas origens
estão diretamente vinculadas aos acontecimentos medievais e que chegaram ao
Nordeste brasileiro atualizados por diferentes sistemas de comunicação
transmitidas de geração em geração. A dança do cego e do sapateiro é mais uma
encenação ressignificada das histórias das cooperações de ofícios representadas
nas antigas procissões, nas festas populares e que continuam presentes no São
João em Sobrado. A dança do cego e do sapateiro é um extraordinário espetáculo
popular que merece ser visto no dia de São João, 24 de junho, em Sobrado. A
dança do cego e do sapateiro encenada na fronteira dos territórios sagrado
(igreja) e do profano (a rua) é uma representação teatral notável –
performática – que através dos seus personagens narram uma história dramática
de amor, traição, cômica, satírica, obscena e sobretudo risível.
Algumas
questões para reflexão
Nas
minhas observações exploratórias participativas no período das festas, em 2013,
2015 e 2019, ficou evidenciado que a Bugiada e Mouriscada é constituída por
complexas redes de agentes intermediários da folkcomunicação, que operam os
diferentes canais de comunicação como mediadores ativistas culturais e que
negociam os interesses da comissão organizadora da festa tradicional popular com os interesses
das demandas de consumo dos bens
culturais da festa no contexto da
sociedade midiatizada (BERTRÃO, 1980, TRIGUEIRO, 2008). Mesmo com a globalização
cultural, cada vez mais o interesse dos meios de comunicação social, do turismo
e de tantos outros agentes externos, a festa religiosa e profana de Sobrado no
dia de São João continua com suas marcas culturais tradicionais, o que faz da
Bugiada e Mouriscada uma festa diferenciada e única das tantas outras
celebrações aos santos populares em Portugal no mês de junho. A Bugiada e
Mouriscada é uma festa com grande participação popular com alegria e diversão,
mas carregada de insatisfações, de críticas aos poderes públicos e privados
publicizadas pelo protagonismo dos agentes ativistas midiáticos culturais da
folkcomunicação, que organizam estratégias de encenação das danças e do teatro popular
de rua crítico, risível, cômico, burlesco, que conta à sua maneia as histórias
do passado entre cristãos e mouros e as histórias do presente entre o povo e as
elites. Nas batalhas entre Bugios e Mourisqueiros, nas paródias da Dança do Cego
ou Sapateirada, da Cobrança dos Direitos, da Lavra da Praça, no Cortejo da
Crítica, na batalha final da prisão e libertação do Velho da Bugiada, o risível,
o cômico e o burlesco têm significação social (BERGSON, 1983). Portando, é
incorreto olhar a festa de São João ou da Bugiada e Mouriscada como um momento
simplesmente de fuga da vida cotidiana e alienada dos problemas socioculturais
e econômicos de Valongo ou mesmo da freguesia de Sobrado. Os brincantes da
festa estrategicamente aproveitam-se do período dessa celebração para narrar o
enfrentamento do bem contra o mal, dos cristãos e mouros, numa batalha que
todos já conhecem o seu final há centenas de anos, mas o povo fica até o
encerramento da festa para ver a vitória dos cristãos contra os mouros infiéis.
Cada festa tem os seus percursos próprios e em Sobrado não é diferente, a
batalha entre cristãos e mouros narrada no decorrer da festa tem as suas singularidades
locais que a diferencia da encenação do Auto do Rei David durante a festa de
São João em Braga, também no dia 24 de junho (observação in loco) e do Auto da
Floripes, em Viana do Castelo, encenado na festa de Nossa Senhora das Neves no
dia 5 de agosto (ABREU, 2001). As batalhas entre cristãos e mouros aqui no
Brasil representadas na Chegança, na Nau Catarineta, na Cavalhada, na literatura
de cordel, nos cantos, nos contos e romances populares e em diferentes
manifestações das culturas tradicionais ao longo do tempo foram incorporando
bens culturais tropicalizados, primeiro pelos povos originais, depois pelos africanos,
depois por tantos outros povos que
chegaram ao Brasil já depois do período colonial e, atualmente, com os avanços
dos meios de comunicação e do turismo para atender as demandas da sociedade
midiatizada. As batalhas nas festas entre cristãos e mouros, entre bem (azul) e
o mal (encarnado), onde esse último sempre é derrotado, são narrativas do ciclo
carolíngio, das canções de gestas que contam os feitos dos reis católicos
contra os infiéis mouros, seja em Portugal ou no Brasil, sempre têm um final
feliz e todos terminam em paz. A festa de São João, como tantas outras que são celebradas,
não deixa de ser uma das representações ressignificadas das antigas rupturas dos
valores sociais da vida cotidiana, da bagunça, da desordem e da transgressão
consentidas pela igreja e autoridades, no início do verão na Europa. O sagrado
e o profano nas festas tradicionais populares não são mais campos de estudos só
do interesse dos folcloristas, etnólogos, sociólogos, historiadores e
antropólogos, nos últimos anos tornou-se objeto de estudos dos comunicólogos e turismólogos,
porque são festas que vêm, cada vez mais, atendendo as demandas dos negócios do
turismo e das organizações da comunicação social. A Bugiada e Mouriscada, é
mais um exemplo de uma festa popular em processo de ressignificação com o
objetivo de atender as demandas da sociedade de consumo inserida no contexto da
globalização cultural, mas não se afasta das suas marcas estruturantes vinculadas
às suas tradições de celebração do dia de São João. Esses agentes internos,
Bugios e Mourisqueiros, são os responsáveis pela manutenção das suas tradições,
que operam como ativistas culturais e negociadores dos processos de transformação
da festa com os agentes intermediários representantes das instituições e
organizações da exterioridade, porque são eles os detentores do patrimônio
cultural da grande batalha entre cristãos e mouros na freguesia de Sobrado,
conselho de Valongo no Norte de Portugal.
Foto: 01 - No dia 24 de junho o povo vai ás ruas de
Sobrado festejar o São João.
Fotos: 04, 05 e 06 –
Imagem milagrosa de São João. Os ex-votos
antropomórficos como testemunhos de graças alcançadas com a intercessão de São
João. Procissão em honra a São João.
Fotos: 15 e 16 – A
encenação da Cobrança do Direito ou de Imposto.
Fotos: 17, 18 e 19 – A encenação
invertida da Lavra da Praça: semear, gradar e lavrar.
Fotos: 20 e 21 – O Cego e o Sapateiro
Fotos: 22, 23, 24 e 25 –
Igreja Matriz de Sobrado dedicada a Santo André localizada no Largo do Passal onde é
encenada a dança do Cego ou Sapateirada.
Fotos: 26 – Cavaleiro leva mensagem do castelo cristão para o castelo mouro no processo de
negociação para libertar o Velho dos Bugios. A mensagem é simbolicamente uma
folha de plátano espetada na sua espada.
Fotos: 27 e 28 – Batalha final entre cristãos e mouros, prisão e libertação do Velho dos Bugios - encerramento da festa.
Referências
ABREU, Alberto A. O Auto da Floripes no imaginário minhoto. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2001.AMORIM, Maria Alice; BENJAMIN, Roberto. Carnaval: cortejos e improvisos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
BARRETO, Luiz Antônio. Cristãos e mouros na cultura brasileira. Eu-América: uma realidade comum? Rio de Janeiro: Comissão Nacional de Folclore/IBEC/UNESCO/ Tempo Brasileiro, 1996.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980.
BENJAMIN, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Editora Universitária, 2000.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LOPES, Aurélio. A Festa dos Bugios do Sobrado. Instituto de Estudos de Literatura Tradicional/Fundação para Ciência e Tecnologia/IRELT. Lisboa, 2008.
PINTO, Manuel. Bugios e Mourisqueiros. Edição da Associação de Defesa do Patrimônio e Cultura do concelho de Valongo/Portugal, 1983.
PONTES, Roberto, MARTINS, Elizabeth Dias. Residualidades ao alcance de todos. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editores, 2015.
SILVA, Jackson Lima da. O folclore em Sergipe I: romanceiro. Rio de Janeiro: Cátedra, Brasília. INL, 1977.
São João de Sobrado. Figuras. Disponível em: < https://saojoaodesobrado.pt/pt/sao-joao-de-sobrado/bugiada-mouriscada/figuras/>. Acesso em 26 de junho. 2024.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Folkcomunicação e ativismo midiático. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Os agentes intermediários culturais e os processos de atualização na folkcomunicação. Revista Internacional de Folkcomunicação. Ponta Grossa, v.16, n.37, 2018. Disponível em: <http://www.revistas.uepg.br/index.php/folkcom/article/view/2388/563563648 >. Acesso 14 maio. 2019.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Muito bom. Parabéns
ResponderExcluirPesquisa preciosa, amigo.
ResponderExcluirExcelente artigo, não só pelo insólito da festa, como.por suas observações. Parabéns, grande pesquisador!! Insistindo... de sua amiga Elisabet
ResponderExcluirBelíssima descricão e lindas imagens. Os meus parabéns por este apreciável trabalho.
ResponderExcluirTrigueiro,
ResponderExcluirComo vai você. Pelo visto muito bem, sempre escrevendo coisas bem informativas, de bom conteúdo e linguagem amena e bonita. Continua encantado com a pesquisa. Isso é ótimo, sobretudo quando se tem a carga de conhecimentos que você tem e sua capacidade de interpretação do que vê. Gostei dos textos. Obrigada.
Beatriz Góis
Amigo Trigueiro,
ResponderExcluirComo sempre, seus artigos/reportagens sobre festas populares são impecáveis, não só sob o aspecto conteúdesco da informação, mas no que toca à riqueza de expressão e profundeza na abordagem, reforçadas pelas imagens fotográficas que acompanham.
Muito agradecido pelo presente.
Jackson Lima
Osvaldo, que festa fantástica! Que artigo bom de se ler! Tenho MTA vontade de conhecer.
ResponderExcluirParabéns, meu amigo!
Marley Sigrist