Quando fui a primeira vez a Portugal, em 1986, para conhecer os familiares de Rosinha com quem já estava casado há oito anos e já com os nossos dois filhos, sentia a necessidade de conhecer o lugar onde ela tinha nascido e onde vivem os seus familiares. Foi uma das melhores coisas da minha vida conhecer uma família típica portuguesa, numerosa e que desenvolve até hoje atividades no meio rural e urbano, ou melhor numa área rurbana, aqui usando o neologismo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre para definir uma área geográfica e sociocultural hibrida entre o rural e o urbano e, sem dúvida, Vilar dos Prazeres se encaixa muito bem nesse conceito.
A economia e a cultura dos Faria Neves, basicamente está concentrada na produção do vinho e do azeite na pequena comunidade de Vilar dos Prazeres e no comércio de artigos religiosos em Fátima, localidades pertencentes ao Conselho de Ourém.
Agora vou contar um pouco da minha história de vida, a minha experiência nesses mais de 30 anos com a família Faria Neves, de Vilar dos Prazeres, principalmente, do meu aprendizado com eles na maneira de degustar, de participar da produção do vinho e do azeite tradicional da região de Ourém.
Ourém, está localizada ao Norte do distrito de Santarém, fazendo divisa com Leiria, Batalha, Torres Novas, Tomar, Ferreira do Zêzere, Alvaiázere e Pombal, a uma distância de 132 Km de Lisboa, 187 Km do Porto, 12 Km de Fátima e está incluída na rota medieval do Tesouro dos Templários, da Demanda do Graal. O seu desenvolvimento urbano deu-se no entorno do Castelo medieval de Ourém.
Agora em 2014 fechei dois ciclos dessa convivência com os Faria Neves, o primeiro em Fátima, o segundo em Vilar dos Prazeres e entornos do Castelo de Ourém.
O primeiro ciclo, o do sagrado, está relacionado com as minhas observações das grandes peregrinações de fé ao Santuário de Fátima durante todos esses anos, mais intensamente, em maio (2011), agosto (2013) e outubro (2014), e já registrado aqui mesmo neste blog. O segundo ciclo, o do profano, está diretamente ligado às festas populares, às colheitas das uvas e das azeitonas para a produção do vinho e do azeite.
São ciclos de atividades dos negócios ligados ao mundo de experiências do não sagrado e ao mundo das experiências do religioso, do mundo do sagrado. São dois mundos que se interligam em campos híbridos entre o sagrado e o profano culturalmente pelos longos períodos da história de Portugal, que vem da Idade Média aos dias atuais. A religião, o vinho, o azeite e o pão são alimentos da alma e do corpo do povo português, por isso estão presentes na maioria das casas e das famílias lusitanas e na família Faria Neves não poderia ser diferente.
Já se passaram quase 30 anos e cada vez que vou a Portugal, mais especialmente a Vilar dos Prazeres, fico encantado com o modo de vida das pessoas que ali vivem. Aprendi com Eugénio Henriques, com Armindo, Quim, Adélio e Antônio (o Tó Faria) o pouco que sei sobre vinho, do vinho artesanal, do vinho caseiro ou melhor do vinho para o autoconsumo ou para vender aos vizinhos e amigos. São longos anos de observações que vão da época da poda, do sulfatar as videiras, da colheita das uvas, enfim, de todo o processo de vinificação até o dia de São Matinho.
Da vindima ao dia de São Martinho no entorno do Castelo de Ourém
O ciclo de produção do vinho, em Vilar dos Prazeres tem início com a poda em dezembro/janeiro, pleno Inverno, e de uma boa poda dependerá a maior e melhor quantidade e qualidade das uvas. Quem faz a poda são os mais experientes da família e essas experiências são quase sempre transmitidas pela oralidade de geração em geração e através de processos horizontais de comunicação – Folkcomunicacionais – compartilhado entre pessoas com interesses comuns. Para conhecer melhor o que é Folkcomunicação acesse a Rede Folkcom.
Assim foi com Eugénio e o seu tio Firmino, assim foi com Antônio Faria (o Tó Faria) e o seu pai Antônio Oliveira Neves, assim foi com tantos outros que conheci em Vilar dos Prazeres que aprenderam a podar as videiras e a fazer vinho com os seus antepassados. Com isso não quero dizer que as novas tecnologias não são importantes na atualidade para uma melhor produção das uvas e do vinho. Fiquei horas observando a prática de Eugénio e do Tó Faria podando cada videira para as deixar moldadas e no ponto certo de produzir boas uvas.
É no início da Primavera que os cachos de uvas ganham formatos, quando chega o Verão, lá em agosto e setembro, as uvas estão com cor, aroma, paladar e prontas para serem colhidas. É hora de agendar a vindima antes das primeiras chuvas do Outono, é hora de convidar os parentes e amigos para a colheita, é hora de trabalho e de muita festa, cada ação é planejada cuidadosamente na organização da vindima.
É importante saber com alguma antecedência quantas pessoas participarão para preparar o lanche e o almoço farto para todos. Na vindima não pode faltar comida nem vinho.
Não cheguei a participar das vindimas, da época do meu sogro Antônio, o Antônio Nabo, de Vilar dos Prazeres, uma referência na comunidade pela prática de podar as videiras e de empregar o método tradicional de fazer vinho. Mas conheci e ouvi de minha sogra, Rosa Faria, histórias das vindimas dos tempos passados, das grandes festas das colheitas das uvas, como eram levadas em grandes cestos para os lagares nos cavalos e carroças de burros, das uvas esmagadas com os pés e depois cuidar do vinho à espera do dia de São Martinho. Mesmo com a modernização, com as inovações tecnológicas, algumas práticas tradicionais continuam em uso nas vindimas, na produção do vinho em Vilar dos Prazeres e no entorno do Castelo de Ourém.
A vindima continua sendo uma importante festa anual de Verão em todo Portugal, das mais modernas quintas e herdades às mais tradicionais adegas familiares. A colheita da uva ainda é um convívio sociocultural de grande significado para a maioria dos portugueses. Para alguns são negócios do turismo, para outros de grande importância econômica, mas a produção do vinho continua sendo um acontecimento de labor e festa da comunidade e da família. Algumas famílias fazem o vinho por hobby ou apenas para manter a tradição dos seus antepassados.
Desta vez, em 2014, em Vilar dos Prazeres e entorno do castelo, participei de várias vindimas e com isso posso dizer que fechei o ciclo de observações da colheita das uvas ao processo da vinificação. A vindima é, quase sempre, uma atividade de compartilhamento entre familiares e amigos. Ou seja, a mão-de-obra na colheita das uvas é uma atividade colaborativa, voluntária, é do trabalho não remunerado monetariamente.
No dia agendado para a vindima, atendendo à solicitação, veiculada e vinculada pelas redes horizontais de comunicação – Folkcomunicação – em que um convida o outro, os parentes, os vizinhos e os amigos pouco a pouco vão chegando a pé, de carro, de moto, de trator, já prontos para o trabalho, com tesouras, cestos, baldes e os demais utensílios necessários para a colheita das uvas. É um dia de trabalho, mas também de muita festa até porque durante a colheitas os homens e as mulheres cantam, conversam, ficam atualizados dos últimos acontecimentos, contam histórias dos seus antepassados, falam de futebol, de política, da qualidade da uva, do vinho e de tantos outros assuntos. É um momento de muitas conversações, de muita alegria, da santificação de ajudar o outro, até porque eles, provavelmente, serão os próximos beneficiados na colheita de suas uvas. Em Vilar dos Prazeres, quase todas as famílias têm um pedacinho de terra para produzir boa parte dos seus alimentos e uvas para o fabrico do seu vinho.
O almoço da festa da colheita das uvas oferecido pelo dono da vindima, é um banquete, como não poderia deixar de ser, cujo cardápio é da tradicional culinária portuguesa acompanhado com bom vinho e pão caseiro. Vocês nem imaginam o que é saborear um cozido, uma bacalhoada ou uma jardineira preparada por minha cunhada Judite, irmã de Rosinha, no dia da colheita das uvas no Perrote, a quinta do casal Eugénio e Judite. É um dia de muito trabalho e que termina em festa na sua adega. Eugénio e Judite, que estão casados há mais de 50 anos, produzem vinho há mais de 30 anos, e no dia da sua vindima a família Faria Neves se reúne quase toda, até mesmo os que moram em Lisboa e outras localidades deixam tudo para ajudar na colheita das uvas. Participar da vindima no Perrote, é uma tradição na família dos Faria Neves, de Vilar dos Prazeres.
Dia de São Martinho: vai a adega e prova o vinho
Finalizada a colheita é hora de levar as uvas para a adega e iniciar o processo de vinificação, ou seja de prensar as uvas e deixar na fermentação, observada cuidadosamente pelo dono da adega, até o dia de São Martinho, celebrado no dia 11 de novembro. No dia de São Martinho vai a adega e prova o vinho, é mais uma tradição mantida em Portugal e tem lá suas razões.
No dia São Martinho eu estava lá no pé da pipa das adegas do Eugénio e do Adélio para provar o vinho novo. Foi um momento de grande expectativa, a hora de provar o vinho, de saber como está a sua formação, a sua estrutura, a graduação alcoólica, a acidez, o aroma, a cor e os sabores.
No dia de São Martinho o vinho ou a Aguapé têm caraterística e personalidade que indicam as possíveis qualidades que o vinho novo terá. Beber a Aguapé no dia de São Martinho com castanhas assadas é algo sensacional.
Para provar o vinho novo é sempre festa com a participação dos familiares, vizinhos e amigos principalmente aqueles que participaram da vindima. Também são convidados provadores de vinho, aqueles detentores da sabedoria tradicional de prova do vinho, e nessa ocasião são emitidas diversas opiniões sobre a qualidade da bebida. Ou seja, se a “pinga”, se a “pomada” vai ficar boa. Pinga e pomada são denominações dadas ao vinho pelos mais velhos da região.
No dia de São Martinho Eugénio e Judite reúnem familiares e amigos para mais um convívio na sua adega, que é sem dúvida um termômetro, um parâmetro para avaliar a qualidade do vinho novo produzido com as uvas do Perrote. E já espero com água na boca a chegada da próxima vindima, em setembro de 2015.
O vinho medieval de Ourém
No Concelho de Ourém fazer vinho é uma tradição que vem desde a época do Império Romano, mas foi com os monges da Ordem de Cristo que se intensificaram os plantios das videiras e a produção do vinho na região. No século XII o D. Afonso Henriques celebrou vários acordos com os monges dos Mosteiros de Alcobaça e de Tomar para introduzir e difundir o método de fabricação do vinho, que logo passou a ser uma importante atividade econômica e sociocultural em todo o concelho de Ourém e continua até os dias atuais. A produção de vinho em Ourém, ao longo da história vem, de certa forma, resistindo aos grandes avanços tecnológicos, mas gradativamente incorpora métodos empregados em outras localidades no modo de fazer vinhos, o que aproxima o seu vinho dos demais produzidos no país.
Nesses últimos anos, principalmente nos meados do século XX, a produção de vinho para atender a demanda de consumo do mundo globalizado, vem perdendo algumas das características marcantes de cada localidade e ficando muito parecidos uns com os outros. Ou seja, a produção de vinho mundial passou a empregar métodos uniformizados e que deixam de lado aquilo que mais marca e enriquece o produto de uma região, de uma localidade, as suas caraterísticas próprias, diferenciadas de uma localidade para outra e até mesmo de uma adega para outra.
Na região de Ourém, nos anos 80 do século passando, cheguei a tomar em várias adegas, quando visitava as casas dos familiares e amigos, um vinho com um sabor e cor diferente dos demais que até então eu não conhecia.
Foi na casa do Eugénio e da Judite, em agosto de 1986, que provei pela primeira vez um vinho que nem era branco e nem tinto, era um vinho diferente pelo sabor, pela cor e pela graduação alcoólica. E assim fui apresentado ao vinho Palhete, o Vinho de Ourém ou o Vinho Medieval, denominação empregada na atualidade como uma estratégia de preservação do método original de produção de vinho pelos Monges de Cister. Para melhor conhecer o vinho palhete é interessante a leitura do livro Manual prático do vinho de Ourém, de António Marques da Cruz e António Vieira Lopes, 2004.
Os ourienses ao longo do tempo passaram a consumir cotidianamente mais o vinho tinto do que o tradicional vinho palhete da região que tem maior graduação alcoólica, e aos poucos o palhete passou a ser produzido em menor quantidade, inclusive correndo risco de desaparecer o tradicional método de sua fabricação medieval.
Preocupados com essa situação alguns produtores de vinho da região das encostas da Serra D’Aire e do entorno do Castelo de Ourém, resolveram resgatar o tradicional método de produção do Vinho de Ourém, resistindo à pressão econômica e de sua comercialização e continuaram a produzir o secular vinho palhete, que tem sabor diferenciado incontestável. O vinho vem despertando aos poucos o interesse do bom apreciador de um vinho marcante, com personalidade de um lugar e com as caraterísticas do vinho tradicional só produzido em Ourém.
Graças à persistência desses produtores o vinho Palhete de Ourém ou o vinho Medieval de Ourém, não corre mais o risco de ser esquecido. O método tradicional de produção do vinho de Ourém, com mais de 800 anos, é garantido e regulamentado pela portaria nº 167/2005. O palhete, passou a ter a sua produção protegida pela certificação de qualidade controlada pelos órgãos especializados e sua produção é atualmente controlada desde o cultivo e colheita das uvas até o engarrafamento.
O vinho palhete, tem caraterísticas que definem muito bem a sua origem pela cor rubi aberta como resultado da mistura de 80% da uva branca Fernão Pires e 20% da uva tinta Trincadeira, tem graduação alcoólica em torno dos 14º, sabor marcante e bem definido pelas misturas das duas castas. Ou seja um método empregado só na região de Ourém de misturar um pouco de uva tinta no vinho branco e o resultado dessa hibridização é o vinho palhete.
Para quem não conhece o vinho palhete no primeiro momento aparenta ser um vinho de menor qualidade, mas o paladar aos poucos vai apresentando uma complexidade de informações próprias de um vinho produzido artesanalmente e de sabor diferenciado. Deve ser servido na temperatura entre 12º e 15º, recomendado como acompanhamento dos pratos tradicionais ou do gosto do cliente e é só deixar o vinho aflorar os seus sentidos.
Agora em 2014 degustei bons vinhos medievais, aqui destaco dois, o Abadia dos Tomarães e Quebradas do Castelo. O primeiro é produzido e comercializado pela Divinis – Agroprodutos de Ourém S.A, Quinta do Casal dos Frades – Portugal (www.divinis.ourem.com), e o segundo pela adega Carvalhal da família do senhor Dionísio e Dona Lina. O seu filho Luiz Filipe continua a tradição da família e cultiva produtos rurais da região na sua Quinta do Carvalhal, em Casal Branco, uma pequena Aldeia próxima do Castelo de Ourém. Entre esses produtos estão as uvas Fernão Pires e Trincadeira especialmente cultivadas para a produção do vinho medieval Quebradas do Castelo.
Quem gosta de um vinho diferenciado e vai visitar o Santuário de Fátima, o mais importante destino turístico do Concelho de Ourém, também deve visitar as tradicionais adegas do entorno do Castelo de Ourém.
Agora fico por aqui mas, o próximo artigo será sobre o azeite e o pão caseiro, também as sardinhadas na quinta-feira, o dia da feira em Ourém. Até lá.
A economia e a cultura dos Faria Neves, basicamente está concentrada na produção do vinho e do azeite na pequena comunidade de Vilar dos Prazeres e no comércio de artigos religiosos em Fátima, localidades pertencentes ao Conselho de Ourém.
Agora vou contar um pouco da minha história de vida, a minha experiência nesses mais de 30 anos com a família Faria Neves, de Vilar dos Prazeres, principalmente, do meu aprendizado com eles na maneira de degustar, de participar da produção do vinho e do azeite tradicional da região de Ourém.
Ourém, está localizada ao Norte do distrito de Santarém, fazendo divisa com Leiria, Batalha, Torres Novas, Tomar, Ferreira do Zêzere, Alvaiázere e Pombal, a uma distância de 132 Km de Lisboa, 187 Km do Porto, 12 Km de Fátima e está incluída na rota medieval do Tesouro dos Templários, da Demanda do Graal. O seu desenvolvimento urbano deu-se no entorno do Castelo medieval de Ourém.
Agora em 2014 fechei dois ciclos dessa convivência com os Faria Neves, o primeiro em Fátima, o segundo em Vilar dos Prazeres e entornos do Castelo de Ourém.
O primeiro ciclo, o do sagrado, está relacionado com as minhas observações das grandes peregrinações de fé ao Santuário de Fátima durante todos esses anos, mais intensamente, em maio (2011), agosto (2013) e outubro (2014), e já registrado aqui mesmo neste blog. O segundo ciclo, o do profano, está diretamente ligado às festas populares, às colheitas das uvas e das azeitonas para a produção do vinho e do azeite.
São ciclos de atividades dos negócios ligados ao mundo de experiências do não sagrado e ao mundo das experiências do religioso, do mundo do sagrado. São dois mundos que se interligam em campos híbridos entre o sagrado e o profano culturalmente pelos longos períodos da história de Portugal, que vem da Idade Média aos dias atuais. A religião, o vinho, o azeite e o pão são alimentos da alma e do corpo do povo português, por isso estão presentes na maioria das casas e das famílias lusitanas e na família Faria Neves não poderia ser diferente.
Já se passaram quase 30 anos e cada vez que vou a Portugal, mais especialmente a Vilar dos Prazeres, fico encantado com o modo de vida das pessoas que ali vivem. Aprendi com Eugénio Henriques, com Armindo, Quim, Adélio e Antônio (o Tó Faria) o pouco que sei sobre vinho, do vinho artesanal, do vinho caseiro ou melhor do vinho para o autoconsumo ou para vender aos vizinhos e amigos. São longos anos de observações que vão da época da poda, do sulfatar as videiras, da colheita das uvas, enfim, de todo o processo de vinificação até o dia de São Matinho.
Da vindima ao dia de São Martinho no entorno do Castelo de Ourém
O ciclo de produção do vinho, em Vilar dos Prazeres tem início com a poda em dezembro/janeiro, pleno Inverno, e de uma boa poda dependerá a maior e melhor quantidade e qualidade das uvas. Quem faz a poda são os mais experientes da família e essas experiências são quase sempre transmitidas pela oralidade de geração em geração e através de processos horizontais de comunicação – Folkcomunicacionais – compartilhado entre pessoas com interesses comuns. Para conhecer melhor o que é Folkcomunicação acesse a Rede Folkcom.
Assim foi com Eugénio e o seu tio Firmino, assim foi com Antônio Faria (o Tó Faria) e o seu pai Antônio Oliveira Neves, assim foi com tantos outros que conheci em Vilar dos Prazeres que aprenderam a podar as videiras e a fazer vinho com os seus antepassados. Com isso não quero dizer que as novas tecnologias não são importantes na atualidade para uma melhor produção das uvas e do vinho. Fiquei horas observando a prática de Eugénio e do Tó Faria podando cada videira para as deixar moldadas e no ponto certo de produzir boas uvas.
É no início da Primavera que os cachos de uvas ganham formatos, quando chega o Verão, lá em agosto e setembro, as uvas estão com cor, aroma, paladar e prontas para serem colhidas. É hora de agendar a vindima antes das primeiras chuvas do Outono, é hora de convidar os parentes e amigos para a colheita, é hora de trabalho e de muita festa, cada ação é planejada cuidadosamente na organização da vindima.
É importante saber com alguma antecedência quantas pessoas participarão para preparar o lanche e o almoço farto para todos. Na vindima não pode faltar comida nem vinho.
Não cheguei a participar das vindimas, da época do meu sogro Antônio, o Antônio Nabo, de Vilar dos Prazeres, uma referência na comunidade pela prática de podar as videiras e de empregar o método tradicional de fazer vinho. Mas conheci e ouvi de minha sogra, Rosa Faria, histórias das vindimas dos tempos passados, das grandes festas das colheitas das uvas, como eram levadas em grandes cestos para os lagares nos cavalos e carroças de burros, das uvas esmagadas com os pés e depois cuidar do vinho à espera do dia de São Martinho. Mesmo com a modernização, com as inovações tecnológicas, algumas práticas tradicionais continuam em uso nas vindimas, na produção do vinho em Vilar dos Prazeres e no entorno do Castelo de Ourém.
A vindima continua sendo uma importante festa anual de Verão em todo Portugal, das mais modernas quintas e herdades às mais tradicionais adegas familiares. A colheita da uva ainda é um convívio sociocultural de grande significado para a maioria dos portugueses. Para alguns são negócios do turismo, para outros de grande importância econômica, mas a produção do vinho continua sendo um acontecimento de labor e festa da comunidade e da família. Algumas famílias fazem o vinho por hobby ou apenas para manter a tradição dos seus antepassados.
Desta vez, em 2014, em Vilar dos Prazeres e entorno do castelo, participei de várias vindimas e com isso posso dizer que fechei o ciclo de observações da colheita das uvas ao processo da vinificação. A vindima é, quase sempre, uma atividade de compartilhamento entre familiares e amigos. Ou seja, a mão-de-obra na colheita das uvas é uma atividade colaborativa, voluntária, é do trabalho não remunerado monetariamente.
No dia agendado para a vindima, atendendo à solicitação, veiculada e vinculada pelas redes horizontais de comunicação – Folkcomunicação – em que um convida o outro, os parentes, os vizinhos e os amigos pouco a pouco vão chegando a pé, de carro, de moto, de trator, já prontos para o trabalho, com tesouras, cestos, baldes e os demais utensílios necessários para a colheita das uvas. É um dia de trabalho, mas também de muita festa até porque durante a colheitas os homens e as mulheres cantam, conversam, ficam atualizados dos últimos acontecimentos, contam histórias dos seus antepassados, falam de futebol, de política, da qualidade da uva, do vinho e de tantos outros assuntos. É um momento de muitas conversações, de muita alegria, da santificação de ajudar o outro, até porque eles, provavelmente, serão os próximos beneficiados na colheita de suas uvas. Em Vilar dos Prazeres, quase todas as famílias têm um pedacinho de terra para produzir boa parte dos seus alimentos e uvas para o fabrico do seu vinho.
O almoço da festa da colheita das uvas oferecido pelo dono da vindima, é um banquete, como não poderia deixar de ser, cujo cardápio é da tradicional culinária portuguesa acompanhado com bom vinho e pão caseiro. Vocês nem imaginam o que é saborear um cozido, uma bacalhoada ou uma jardineira preparada por minha cunhada Judite, irmã de Rosinha, no dia da colheita das uvas no Perrote, a quinta do casal Eugénio e Judite. É um dia de muito trabalho e que termina em festa na sua adega. Eugénio e Judite, que estão casados há mais de 50 anos, produzem vinho há mais de 30 anos, e no dia da sua vindima a família Faria Neves se reúne quase toda, até mesmo os que moram em Lisboa e outras localidades deixam tudo para ajudar na colheita das uvas. Participar da vindima no Perrote, é uma tradição na família dos Faria Neves, de Vilar dos Prazeres.
Dia de São Martinho: vai a adega e prova o vinho
Finalizada a colheita é hora de levar as uvas para a adega e iniciar o processo de vinificação, ou seja de prensar as uvas e deixar na fermentação, observada cuidadosamente pelo dono da adega, até o dia de São Martinho, celebrado no dia 11 de novembro. No dia de São Martinho vai a adega e prova o vinho, é mais uma tradição mantida em Portugal e tem lá suas razões.
No dia São Martinho eu estava lá no pé da pipa das adegas do Eugénio e do Adélio para provar o vinho novo. Foi um momento de grande expectativa, a hora de provar o vinho, de saber como está a sua formação, a sua estrutura, a graduação alcoólica, a acidez, o aroma, a cor e os sabores.
No dia de São Martinho o vinho ou a Aguapé têm caraterística e personalidade que indicam as possíveis qualidades que o vinho novo terá. Beber a Aguapé no dia de São Martinho com castanhas assadas é algo sensacional.
Para provar o vinho novo é sempre festa com a participação dos familiares, vizinhos e amigos principalmente aqueles que participaram da vindima. Também são convidados provadores de vinho, aqueles detentores da sabedoria tradicional de prova do vinho, e nessa ocasião são emitidas diversas opiniões sobre a qualidade da bebida. Ou seja, se a “pinga”, se a “pomada” vai ficar boa. Pinga e pomada são denominações dadas ao vinho pelos mais velhos da região.
No dia de São Martinho Eugénio e Judite reúnem familiares e amigos para mais um convívio na sua adega, que é sem dúvida um termômetro, um parâmetro para avaliar a qualidade do vinho novo produzido com as uvas do Perrote. E já espero com água na boca a chegada da próxima vindima, em setembro de 2015.
O vinho medieval de Ourém
No Concelho de Ourém fazer vinho é uma tradição que vem desde a época do Império Romano, mas foi com os monges da Ordem de Cristo que se intensificaram os plantios das videiras e a produção do vinho na região. No século XII o D. Afonso Henriques celebrou vários acordos com os monges dos Mosteiros de Alcobaça e de Tomar para introduzir e difundir o método de fabricação do vinho, que logo passou a ser uma importante atividade econômica e sociocultural em todo o concelho de Ourém e continua até os dias atuais. A produção de vinho em Ourém, ao longo da história vem, de certa forma, resistindo aos grandes avanços tecnológicos, mas gradativamente incorpora métodos empregados em outras localidades no modo de fazer vinhos, o que aproxima o seu vinho dos demais produzidos no país.
Nesses últimos anos, principalmente nos meados do século XX, a produção de vinho para atender a demanda de consumo do mundo globalizado, vem perdendo algumas das características marcantes de cada localidade e ficando muito parecidos uns com os outros. Ou seja, a produção de vinho mundial passou a empregar métodos uniformizados e que deixam de lado aquilo que mais marca e enriquece o produto de uma região, de uma localidade, as suas caraterísticas próprias, diferenciadas de uma localidade para outra e até mesmo de uma adega para outra.
Na região de Ourém, nos anos 80 do século passando, cheguei a tomar em várias adegas, quando visitava as casas dos familiares e amigos, um vinho com um sabor e cor diferente dos demais que até então eu não conhecia.
Foi na casa do Eugénio e da Judite, em agosto de 1986, que provei pela primeira vez um vinho que nem era branco e nem tinto, era um vinho diferente pelo sabor, pela cor e pela graduação alcoólica. E assim fui apresentado ao vinho Palhete, o Vinho de Ourém ou o Vinho Medieval, denominação empregada na atualidade como uma estratégia de preservação do método original de produção de vinho pelos Monges de Cister. Para melhor conhecer o vinho palhete é interessante a leitura do livro Manual prático do vinho de Ourém, de António Marques da Cruz e António Vieira Lopes, 2004.
Os ourienses ao longo do tempo passaram a consumir cotidianamente mais o vinho tinto do que o tradicional vinho palhete da região que tem maior graduação alcoólica, e aos poucos o palhete passou a ser produzido em menor quantidade, inclusive correndo risco de desaparecer o tradicional método de sua fabricação medieval.
Preocupados com essa situação alguns produtores de vinho da região das encostas da Serra D’Aire e do entorno do Castelo de Ourém, resolveram resgatar o tradicional método de produção do Vinho de Ourém, resistindo à pressão econômica e de sua comercialização e continuaram a produzir o secular vinho palhete, que tem sabor diferenciado incontestável. O vinho vem despertando aos poucos o interesse do bom apreciador de um vinho marcante, com personalidade de um lugar e com as caraterísticas do vinho tradicional só produzido em Ourém.
Graças à persistência desses produtores o vinho Palhete de Ourém ou o vinho Medieval de Ourém, não corre mais o risco de ser esquecido. O método tradicional de produção do vinho de Ourém, com mais de 800 anos, é garantido e regulamentado pela portaria nº 167/2005. O palhete, passou a ter a sua produção protegida pela certificação de qualidade controlada pelos órgãos especializados e sua produção é atualmente controlada desde o cultivo e colheita das uvas até o engarrafamento.
O vinho palhete, tem caraterísticas que definem muito bem a sua origem pela cor rubi aberta como resultado da mistura de 80% da uva branca Fernão Pires e 20% da uva tinta Trincadeira, tem graduação alcoólica em torno dos 14º, sabor marcante e bem definido pelas misturas das duas castas. Ou seja um método empregado só na região de Ourém de misturar um pouco de uva tinta no vinho branco e o resultado dessa hibridização é o vinho palhete.
Para quem não conhece o vinho palhete no primeiro momento aparenta ser um vinho de menor qualidade, mas o paladar aos poucos vai apresentando uma complexidade de informações próprias de um vinho produzido artesanalmente e de sabor diferenciado. Deve ser servido na temperatura entre 12º e 15º, recomendado como acompanhamento dos pratos tradicionais ou do gosto do cliente e é só deixar o vinho aflorar os seus sentidos.
Agora em 2014 degustei bons vinhos medievais, aqui destaco dois, o Abadia dos Tomarães e Quebradas do Castelo. O primeiro é produzido e comercializado pela Divinis – Agroprodutos de Ourém S.A, Quinta do Casal dos Frades – Portugal (www.divinis.ourem.com), e o segundo pela adega Carvalhal da família do senhor Dionísio e Dona Lina. O seu filho Luiz Filipe continua a tradição da família e cultiva produtos rurais da região na sua Quinta do Carvalhal, em Casal Branco, uma pequena Aldeia próxima do Castelo de Ourém. Entre esses produtos estão as uvas Fernão Pires e Trincadeira especialmente cultivadas para a produção do vinho medieval Quebradas do Castelo.
Quem gosta de um vinho diferenciado e vai visitar o Santuário de Fátima, o mais importante destino turístico do Concelho de Ourém, também deve visitar as tradicionais adegas do entorno do Castelo de Ourém.
Agora fico por aqui mas, o próximo artigo será sobre o azeite e o pão caseiro, também as sardinhadas na quinta-feira, o dia da feira em Ourém. Até lá.