lá não tem isolamento social nem Covid-19
Folheto Manoel Camilo das Santos 1981 |
Sonhei
que estava indo para o país de São Saruê. Foi uma viagem longa de sete dias e
sete noites, passei por várias cidades, por estradas cobertas de neve,
atravessei um grande deserto, depois uma floresta tropical até chegar ao
semiárido do Nordeste brasileiro. Dei muitas voltas por mais de três dias e
três noites e não encontrei esse país encantado. Foi mais um pesadelo na madrugada
de isolamento social e medo do Covid-19 me pegar.
Mas, onde
será que fica esse país tão bom de morar? Quem sabe onde fica o caminho para
São Saruê? Não localizo pelo GPS e lá também não tem sinal de celular. Meu
Deus! Mostre o caminho para chegar a São Saruê, eu quero lá ficar até que passe
esta pandemia que fez o mundo parar. Não tem jeito, São Saruê é um lugar que só
existe no imaginário da cultura popular e do nosso folclore.
Não
tem passaporte nem visto de entrada e sendo assim fico aqui mesmo no meu
isolamento social tentando escapar já que sou do grupo de risco e tenho que me
cuidar. Mas, depois que tudo isso passar vou continuar procurando até encontrar
esse país imaginário bom de se morar.
As possíveis origens desse lugar encantado
Na Europa medieval surgiram narrativas tradicionais orais transmitidas de geração em geração que contavam a lenda de um povo que morava num lugar imaginário, provavelmente localizado no Norte da França. Quem vivia nesse lugar maravilhoso tinha liberdade de sair de casa a qualquer hora, não passava fome, não precisava trabalhar, estava livre de todas as doenças e não ficava esperando a morte chegar.
Esse
lugar maravilhoso chama-se Cocanha, criado provavelmente por volta dos séculos
XII e XIII quando o Velho Mundo passou por importantes transformações
socioculturais, econômicas, políticas, religiosas e de grandes mobilidades dos
diferentes povos na propagação do Cristianismo pelas Cruzadas e pelos Peregrinos
rumo aos lugares sagrados.
A
narrativa desse lugar imaginário percorreu cidades, aldeias, comunidades rurais
e foi enriquecendo as lendas, os contos, as músicas, as poesias da tradição
popular e do folclore na Europa medieval. As lendas que contavam a vida dos
moradores desse lugar fabuloso, onde todos viviam felizes, em harmonia com a
natureza, com muito amor, paz e sossego percorreram, durante séculos, a Europa
e chegaram muito tempo depois a quase todas as partes do mundo, inclusive ao
Novo Mundo.
O povo
por onde passava contava as histórias desse lugar encantado e que atravessaram
a Europa pelas extensas redes orais de comunicação, nas múltiplas estruturas
narrativas das tradições populares que foram, no decorrer de tempo,
incorporando novos conhecimentos e novas experiências locais.
E como
quem conta um conto sempre aumenta um ponto, os boatos do lugar encantado foram
crescendo e cada vez mais o desejo do povo daquela época – Idade Média – era de
um dia poder viver lá para se livrar da vida cotidiana do mundo verdadeiro (doenças,
fome, guerra, morte etc.).
Assim,
essa história contada de boca em boca por várias gerações, anos depois chega a
Santiago de Compostela e expande-se por toda a Península Ibérica. Séculos
depois atravessou o Atlântico e chegou provavelmente ao Brasil no período dos
grandes descobrimentos por volta dos séculos XVI e XVII. Consolida-se como texto
tradicional de comunicação popular e do folclore no Nordeste no início do
século XX e continua viva no imaginário do povo brasileiro em pleno século XXI,
nas diferentes expressões culturais tradicionais e especialmente na literatura
de cordel.
São Saruê: um país utópico no sertão nordestino
Mas, não podemos afirmar com precisão como as narrativas sobre esse lugar das mil e uma fantasias chegaram ao Brasil, se foi com os colonizadores portugueses, espanhóis, holandeses ou até mesmo pelos franceses que estiveram, por maior ou menor tempo no território brasileiro. Todos esses povos eram portadores de diferentes narrativas desse lugar imaginário cheio de encantamentos, de maravilhas e da juventude eterna.
Os modos
de pensar e agir de muitos nordestinos, principalmente do homem do Sertão,
conservam características desse jeito de ser do homem medieval, sua cultura e
sua convivência com as diversidades (seca, enchente, fome, fartura, violência, pobreza,
doença, analfabetismo, festa, morte e muita fé religiosa). E assim, o sertanejo
vive na esperança, na fé que um dia tudo vai melhorar e esse lugar encantado
cheio de simbolismo funciona como um contra ponto da vida cotidiana do mundo
verdadeiro para viver o cotidiano de um mundo ficcional. Mas, não significa
dizer que o nordestino ou o sertanejo não seja trabalhador, lutador e
resistente às diversidades da vida cotidiana do mundo real, muito pelo
contrário, os lugares encantados, utópicos narrados nas manifestações culturais
tradicionais do povo nordestino estão cheios de simbolismos irônicos,
satíricos, cômicos e críticos das injustiças sociais e econômicas.
São essas
diversidades persistentes há séculos no Nordeste que o tornam até hoje um
território fértil de repertórios de narrativas medievais, que são atualizadas e
veiculadas nas redes tradicionais de comunicação popular e do folclore,
contadas e cantadas nas festas religiosas e profanas. E como não poderia deixar
de ser esses valores culturais estão fortemente expressos na literatura de
cordel onde entre as inúmeras abordagens temáticas vamos encontrar o da Cocanha
ou do lugar encantado de São Saruê.
Em épocas passadas as narrativas dos acontecimentos nesse lugar encantado eram quase exclusivamente articuladas pelas redes orais de comunicação presentes nos
mitos, nas lendas e fábulas, nas poesias, nas músicas e danças, nos dramas e
comédias. Na atualidade essas narrativas vão incorporando significados de
diferentes pontos de vista, novos conhecimentos e novas experiências agora
articuladas pela oralidade, pela escrita e pelo audiovisual. Melhor dizendo,
são narrativas da tradição cultural incorporadas às redes de comunicação
veiculadas em livro, televisão, filme, redes sociais e em tantas outras
ferramentas midiáticas, porque são temáticas carregadas de conteúdos de desejos,
de alegorias e consequentemente de importante interesse da demanda de consumo
popular.
A Viagem a São Saruê: um lugar de encantamento
As narrativas contadas desse país habitado por povo feliz rompem a barreira do tempo, viajam por muitos lugares, no carro da brisa, transformam-se em cordel, um dos mais vendidos no Nordeste brasileiro, pela veia poética do paraibano Manoel Camilo dos Santos.
Quando
escreveu e publicou o folheto Viagem a São Saruê, na primeira metade do
século passado, Manoel Camilo reacendeu no imaginário coletivo do povo
nordestino o desejo de viajar um dia para esse lugar lendário que ele ouvia
falar desde pequenino. Assim, o poeta narra a sua longa viagem a São Saruê:
Gravura de José Costa Leite. Folheto 1977 |
Iniciei a viagem
as quatro da madrugada
tomei o carro da brisa
passei pela alvorada
junto do quebrar da barra
eu vi a
aurora abismada (...)
Avistei uma cidade
como nunca vi igual
toda coberta de ouro
e forrada de cristal
ali não existe pobre
é tudo rico em geral.
A identificação
da cidade é uma placa de barra de ouro e com letras cravadas de brilhantes
dizendo: São Saruê é este lugar aqui. Em São Saruê não tem desigualdade
de classe todos são ricos, não existe déficit de habitação, só tem casa de luxo
para morar:
Gravura do Folheto de 1981 |
Uma barra de ouro puro
servindo de placa eu vi
com as letras de brilhante
chegando mais perto eu li
dizia: São Saruê
é este lugar aqui (...).
Lá os tijolos das casas
são de cristal e marfim
as portas barras de pratas
fechaduras de “rubim”
as telhas folhas de ouro
e o piso de cetim.
Neste país
encantado não há fome, é um lugar cheio de fartura, nos rios corre leite, tem
açudes de vinho e as barreiras de carne assada, as lagoas de mel de abelha, os
atoleiros de coalhada, os montes de carne guisada, as pedras são de queijo e
rapadura, feijão dá feito mato e já cozinhado. Em São Saruê roupas, chapéus
sapatos e dinheiro são coisas que brotam nas árvores. Não existe analfabetismo,
as crianças já nascem falando e sabendo ler. Assim, continua Manoel Camilo
narrando o que viu:
Gravura de José Costa Leite. Folheto 1977 |
Sítios de pés de dinheiro
que faz chamar atenção
os cachos de notas grandes
chega arrastam pelo chão
as moitas de prata e ouro
são mesmo
que algodão (...)
Lá quando nasce um menino
não ‘dar’ trabalho a criar
já é falando e já sabe
ler, escrever e contar
salta, corre, canta e faz
tudo
quando se mandar.
Na cidade
encantada existem vários lugares magníficos e tem até o rio de nome o banho
da mocidade, ou seja, a encantada fonte da juventude, desejada por
diferentes povos desde a antiguidade aos nossos dias, poderá ser encontrada em
São Saruê. O poeta paraibano assim descreve a fonte e os lugares magníficos de
São Saruê:
Gravura de José Costa Leite. Folheto 1977 |
Lá tem um rio chamado
o banho da mocidade
onde um velho de cem anos
tomando banho a vontade
quando sai fora parece
ter vinte
anos de idade.
É um lugar magnifico
onde eu passei muitos dias
bem satisfeito e gozando
prazer, saúde, alegrias
todo esse tempo ocupei-me
em
recitar poesias.
O poeta
usa uma estratégia para vender o folheto dizendo que quem quiser saber como
encontrar o país encantado tem que comprar o cordel.
Eu comprei
o folheto na esperança de encontrar o caminho certo que me levasse a esse lugar
bom de se morar mas, nem em sonho encontrei.
Nas últimas
estrofes o poeta assim diz:
Lá existe tudo quanto é de beleza
tudo quanto é bom, belo e bonito,
parece um lugar santo e bendito
ou um jardim da divina Natureza
imita muito bem pela grandeza
a terra da antiga promissão
para onde Moisés e Arão
conduziram o povo a Israel
onde dizem que corriam leite e mel
e caía manjar do céu no chão
Tudo lá é festa e harmonia
amor, paz, benquerer, felicidade
descanso, sossego e amizade
prazer, tranquilidade e alegria;
na véspera de eu sair naquele dia
um discurso poético lá eu fiz,
me deram a mandado de um juiz
um anel de brilhante e de “rubim”
no qual um letreiro diz assim:
- É feliz quem visita este País.
Vou terminar avisando
a qualquer um amiguinho
que quiser ir para lá
posso ensinar o caminho,
porém só ensino a quem
me
comprar um folhetinho.
Nada
melhor do que contar essa história fantástica neste momento de isolamento social
para enfrentar mais um período de pandemia que desde a Idade Média afeta e mata
milhares de pessoas em quase todas as partes do mundo. Lamentavelmente
ainda não encontrei esse lugar encantado tão bom de viver e aqui no mundo real
tenho que esperar a pandemia passar. O país encantado de São Saruê deve estar em algum
lugar do semiárido nordestino e vou continuar procurando até um dia encontrar. E se
Deus é brasileiro, como algumas pessoas dizem, acho que Ele viveu em São Saruê
um lugar sem pecado, sem maldade, sem inveja, sem isolamento social, sem Covid-19.
Quem quiser conhecer melhor esse país encantado recomendo que compre, leia com
atenção o cordel de Manoel Camilo dos Santos Viagem a São Saruê, se
tiver mais sorte que eu e chagar lá, venha me buscar.
Referências
BARRETO, Luiz
Antonio. Cristãos e mouros na cultura brasileira. Euro-América. Rio de
Janeiro: Comissão Nacinal de Folclore/IBEC/UNESCO: Tempo Brasileiro, 1996.
BELTRÃO,
Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São
Paulo: Cortez, 1980.
BENJAMIN,
Roberto. A presença da temática francesa na literatura de cordel brasileira
– nota prévia. Comunicação ao Congresso Internacional de Literatura
de Cordel, 1. Governo da Paraíba/Universidade de Poitiers, João Pessoa, 20 a 23
de setembro de 2005.
FRANCO
JÚNIOR, Hilário. Cocanha:
a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SANTOS,
Manoel Camilo. Viagem a São Saruê.
[Folheto de cordel]. João Pessoa: MEC/PRONASEC RURAL – SEC/PB/UFPB/FUANPE, 1981.
SANTOS,
Manoel Camilo. Viagem a São Saruê. [Folheto de cordel]. Olinda: Ed. Casa das crianças
de Olinda, 1977.
TRIGUEIRO,
Osvaldo Meira. Cocanha:
o encantamento medieval e contemporâneo no cordel. Disponível
em: <https://docplayer.com.br/14178354-Cocanha-o-encantamento-medieval-e-contemporaneo-no-cordel.html>
Se descobrir onde fica São Sarauê, me avise! Vamos para lá!
ResponderExcluirEu também quero morar lá! É muita maravilha num lugar só!
ResponderExcluirMaravilha!
ResponderExcluirAmigo Osvaldo,por alguns minutos,você me fez morar em São Saruê.Obrigado!
Esse cordel é uma obra prima!
ResponderExcluirBom dia. Interessante. Também quero ir.kkk
ResponderExcluirFazia tempo que um texto passara tão rápido por minhas vistas. Parabéns amigo, esse texto merece ser lido diversas vezes. Ímpar.
ResponderExcluirAmigo Osvaldo,
ResponderExcluirSão Saruê é o país da felicidade, gostaria de ir para lá também nessa bela viagem rumo a felicidade plena. Mas eu fiz um outra opção preferi ir para Passárgada, porque lá sou amigo do rei, me deito na mesma cama, com a mulher que escolherei.
Abraço,
Severino Vicente
Pres. da Comissão Nacional de Folclore
Osvaldo, magnífico seu texto analítico, já lhe falei antes vc é "o cara", o q sabe dar um norte para os estudos da cultura popular, um olhar atualizado.
ResponderExcluirEu tenho esse cordel, trabalhei algumas vezes com meus alunos, realmente é rico para interpretação e fzr correlações com a história e a atualidade.
Bem escolhido.
Abraços.
Marlei
Osvaldo,
ResponderExcluirUm texto reflexivo, análise do melhor. Grandioso e certeiro como uma bússola.
Também eu quero ir pra São Saruê! Grande abraço pra si e Rosinha.
Lélia Nunes
Abraço fraterno e virtual ao casal Osvaldo e Rosinha. Saúde e paz.
ResponderExcluirPensei em uma denominação para a minha morada e escolhi A Morada São Saruê. Paraíso em cordel... Kkk
Gutenberg Costa
Pres. da Comissão Norte-Rio-Grandense de Folclore
Adorável... também quero ir para lá
ResponderExcluirBet Moreira
Prezado Osvaldo
ResponderExcluirMaravillosa nota, felitaciones.
Ana María Dupey
Muito bonito, Professor.
ResponderExcluirObrigada e continue a viagem. Essa e outras, por favor.
Bj
Zé Justino
Lindo o lugar, mas precisamos de um mapa pra descobrir onde fica.
ResponderExcluirParabéns, meu caro. Os textos sempre ótimos e tão cheios de Nordeste.
Yuji Gushiken
Trigueiro querido
ResponderExcluirViva a matéria que nos traz de novo a possibilidade de sonhar com o que vale a pena.
Quero ir para São Saruê!
Abraço,
Salett Tauk.
Que post maravilhoso.
ResponderExcluirLeve todos nós!!!
Um lugar sem covid, sem Bozo, tudo que queremos...
Muito bom trabalho.
Trigueiro... esperamos seus livros ansiosos.
Nesse confinamento, mande ver.
Vou divulgar.
Abs
MErica
Bom dia professor,
ResponderExcluirQue maravilha de lugar, "as pedras são de queijo e rapadura". Uma riqueza este cordel que traz os irmãos Grimm ao nordeste do Brasil. Muito obrigada pela sensibilidade em sua narrativa. Ainda é possível sonhar! Só o folclore para evidenciar o sentimento existente entre o céu e a terra.
Parabéns!
Forte abraço para vc e Rosinha.
Rúbia Lóssio
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Muito bom o texto. a análise também e a busca constante da Utopia para escapar, mesmo que por alguns minutos, da dura realidade que nos assola. abraços
ResponderExcluir03 de setembro de 2021, não sei como cheguei aqui, mas fiquei encarando com a utopia desse mundo chamado são saruê. Ainda mais sendo escrito em uma das melhores épocas criativas do nosso Brasil. Queria ter amigos tão sonhadores quanto eu.
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