segunda-feira, 19 de julho de 2021

Cramol: canto de mulheres portuguesas

As freiras cantam no coro,
As cachopas ao serão
Cantam as moças e velhas
Na noite de São João
(Cancioneiro de São João, Évora\Portugal)

 

Reencontrei a professora portuguesa Zé Justino, que é nossa parceira de investigação na Rede Folkcom – Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação, em 2012 na cidade de Campina Grande no Estado da Paraíba-Brasil, onde no mês de junho é realizada uma das maiores festas de São João do Brasil. O nosso encontro foi na XV Conferência Brasileira de Folkcomunicação e no IX Seminário: Os Festejos Juninos no Contexto da Folkcomunicação e da Cultura Popular, um evento científico cultural promovido pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Zé Justino é professora na Escola Superior de Comunicação Social e investigadora no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A investigadora portuguesa nos últimos anos tem contribuído para o desenvolvimento de estudos e intercâmbios com a Rede Folkcom sobre patrimônio cultural, literatura e folclore português no contexto da folkcomunicação.

Nesse seminário chamou muita atenção porque trazia novos conhecimentos sobre os festejos juninos em Portugal e quase tudo era novidade para a plateia constituída na sua maioria de professores, investigadores e estudantes da área do conhecimento da comunicação social, da folkcomunicação e das manifestações culturais tradicionais e do folclore no contexto da sociedade midiatizada.  A sua intervenção teve como tema principal: São João Batista na música tradicional portuguesa: São João na tradição popular portuguesa, em geral, e na música tradicional, em particular. Exemplos de usos de temas relacionados com São João, quer em comunidades rurais, quer urbanas, quer rurbanas [grifo nosso]”

A professora Zé Justino, relata as suas experiências como pesquisadora e ativista cultural com exemplos demonstrativos da importância das festas, das romarias, dos cancioneiros tradicionais portugueses e de tantas outras manifestações culturais populares e folclóricas que estão em plena atividade na sociedade contemporânea em constantes processos de modernização do rural ao urbano e até ao rurbano como é citado na ementa do trabalho apresentado. A professora Zé Justino usa o neologismo rurbano – criado pelo sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre – para definir socioculturalmente os habitantes das pequenas cidades e aldeias que são conceituadas como urbanas, mas na realidade continuam mantendo suas características de comunidades rurais economicamente e socioculturalmente. No Brasil a maioria das cidades tem menos de 50 mil habitantes e estão conectadas ao mundo globalizado pela comunicação social e pelas redes online, mas continuam mantendo o seu patrimônio cultural tradicional e folclórico em permanente processo de modernização. Os estudos de Zé Justino em Portugal estão em perfeita sintonia com o que estamos realizando na Rede Folkcom no Brasil.

 Na parte final do seu trabalho apresentado na conferência e no seminário da Rede Folkcom, a professora encanta a todos nós com o relato das suas experiências como investigadora, ativista cultural e participante do Cramol, um coral formado por mulheres que se dedica na divulgação das músicas e cantos tradicionais portugueses.

Zé Justino, na sua intervenção, mostrou que as tradições culturais e folclóricas de celebrações dos festejos juninos – para os Santos Populares – também são fortes em quase todas as regiões de Portugal e, finalizando a apresentação, narra a sua experiência com o coral Cramol exibindo um vídeo do grupo cantando as músicas tradicionais de São João em Portugal. 

A importância do coral Cramol em Portugal

Nos seus mais de 40 anos de atividade divulgando a música popular tradicional portuguesa, o Cramol é um testemunho da importância da criação cultural e estética do mundo rural vivido por mulheres nas horas do trabalho, do sagrado e da festa. O Cramol, foi fundado em 1979 por sugestão do maestro Domingos de Morais, com o objetivo de dar maior visibilidade ao canto tradicional e à sonoridade ancestral dessas manifestações culturais, que representam uma das inúmeras riquezas do patrimônio musical e do canto português.

O Cramol, uma organização autônoma, é constituído por cerca de 20 mulheres e é vinculado à Biblioteca Operária Oeirense (BOO), localizada no município de Oeiras, na área metropolitana de Lisboa. O grupo teve como diretor artístico o maestro Rui Vaz, que foi sucedido pelo maestro Luís Pedro Faro e desde 2003 tem a direção artística do maestro Eduardo Paes Mamede. O grupo Cramol já fez inúmeras apresentações em diferentes regiões de Portugal e em outros países da Europa, além de realizarem conferências, seminários, oficinas e cursos sobre o patrimônio cultural do cancioneiro popular português.  

O que caracteriza o grupo Cramol é a diversidade do seu repertório constituído de músicas e cantos interpretados por vozes de mulheres tendo como base as pesquisas dos etnomusicólogos Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, que por longos anos recolheram músicas, cantos e literatura oral populares tradicionais portugueses. 

Em 2019, o Cramol celebrou os 40 anos de existência com uma série de espetáculos, conferências em igrejas, museus, escolas e na BOO. Duas das fundadoras do grupo, Margarida Silva e Teresa Rebelo, em evento promovido pelo CCIF-Centro de Cultura e Intervenção Feminista e pela UMAR – União de Mulheres Alternativas, assim definem o grupo:

O Cramol dedica-se ao canto tradicional de mulheres por ser, em si mesmo, um testemunho de um património único, de cultura e criação estética das mulheres rurais. Fundámos o Cramol para preservar essa riqueza. Para mostrar o valor intrínseco da voz, do canto que as mulheres nesses territórios criaram, produziram. Essa fala de mulheres, uma forma de dizer e transmitir saber, um saber assente na afirmação do sentido da terra, da dureza do trabalho, da expressão da vida e do espírito de comunidade. Criámos o Cramol para dar a conhecer como o canto de mulheres foi, (é?) um instrumento da construção de si mesmas, das comunidades da sua pertença e presença evidenciando o seu poder de ser ator como mulheres. Para revelar como o canto, essa fala de mulheres, é modo de se transcender como tal e persistir, dando visibilidade a uma existência quotidiana de autonomia e liberdade.

E continuam:

Como dissemos, nós, as mulheres que fazem o Cramol, cantamos o que herdámos, o nosso património comum, especificamente no que respeita ao legado deixado pelas mulheres. Um canto que nasce da terra e de quem a revolve, a habita e trabalha. E dela muito espera, consoante o tempo. E desta experiencia vivida na carne nasceu o canto, melhor dizendo, os muitos cantos que povoam o corpo, o pensamento, desejos e falas das mulheres. A memória dessas sonoridades interroga as circunstâncias existenciais, sociais e culturais de hoje abrindo novas possibilidades performativas e de sentido às falas no feminino. A voz e o corpo e as memórias que habitam o canto, enquanto totalidade que liberta, invoca diversas dimensões da experiência humana que importa explorar e debater.

O Cramol encanta cantando por onde passa, contando a história de vida dessas mulheres trabalhadeiras e pela música narra os seus hábitos, seus costumes, seus sentimentos e suas crenças. O grupo interpreta a vida dessas mulheres, que como muitas outras,  têm os seus momentos de alegrias e tristezas, de suas lutas e aflições, de amores e desamores e tudo isso sem apelar para o lado apenas lúdico e pitoresco ou do espetáculo dramático de lamentações como uma diversão “para turista ver”. Muito pelo contrário,  o Cramol canta a vida de mulheres que herdaram dos seus antepassados o patrimônio cultural e continuam contando histórias que são removidas das raízes rurais para os espaços de sociabilidade urbanos ou rurbanos na contemporaneidade.    

Veja aqui mais um vídeo do Cramol.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

A Coronavac: graças a Deus


a vida é assim
tem começo tem fim
a vida que chega
a vida que sai
a vida que passa
a vida que tem pernas curtas
a vida que se esconde da morte
a vida dos altos e baixos
a vida das alegrias e tristezas
a vida planejada pro futuro
a vida bem vinda no ano vindouro
a vida vivida depois da vacina
graças a Deus.


(Tomei a segunda dose da vacina Coronavac no dia 19/4/2021)

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A Cata das Promessas: o ex-voto como veículo folkcomunicacional

 (História pra contar )


Parque Religioso Cruz da Menina


Perto a cidade de Patos

existe uma romaria

chamada Cruz da Menina

que vem gente todo dia

conhecer, pagar promessa

de fora e da freguesia.

(Antônio Américo de Medeiros, poeta popular)



Narro agora uma breve história da minha ligação religiosa e especialmente como pesquisador da Rede Folkcom – Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação.

A história da Cruz da Menina sempre fez parte do meu imaginário religioso e cultural desde a infância aos dias atuais. Eram frequentes, na casa dos meus pais e da minha avó materna, as narrativas das histórias de curas das mais diferentes doenças, dos mais variados desejos alcançados por parentes, conhecidos e até de romeiros de fora da freguesia. São incontáveis os fatos narrados através dos ex-votos depositados nas duas salas dos milagres na Cruz da Menina.

Visitei inúmeras vezes o Parque Religioso da Cruz da Menina, que está localizado no município de Patos, cidade onde nasci, ás margens da BR 230 e cerca de 300 km de João Pessoa, a capital do Estado da Paraíba/Brasil, por acreditar no poder de cura da Francisca, da fama de milagreira, mas também por ser um lugar agradável para o descanso na caminhada da casa dos meus pais da Rua Pedro Firmino, no centro de Patos, até ao sítio da minha família que ficava próximo da fazenda Trapiá e da capelinha com a imagem de Francisca a menina milagreira. Em Campo Alegre vivi períodos felizes da infância e parte da minha adolescência, onde ouvi relatos dos romeiros que por lá passavam rumo à Cruz da Menina, seguindo a linha do trem vindo de vários outros sítios da redondeza. E ao longo dos anos fui construindo uma memória sociocultural deste lugar considerado sagrado pela devoção do catolicismo popular.

A minha ligação com a Cruz da Menina continua forte por dois aspectos, o primeiro por ser um lugar místico e cheio de boas energias para quem acredita e eu continuo acreditando nos milagres da Francisca, o segundo por ser um lugar de memórias, de testemunhos deixados pelos peregrinos nas salas dos milagres que através dos ex-votos narram diferentes acontecimentos e anunciam as graças alcançadas. 

Portanto, neste artigo abordo a importância dos ex-votos como expressão de fé depositados nos lugares de agradecimentos por graças alcançadas e principalmente como narrativa dos acontecimentos que levaram os romeiros a pagarem promessas aos santos e santas de suas devoções.

Ex-votos Cruz da Menina
Foto do acervo pessoal

Não é meu objetivo aqui enfocar a história trágica da morte da menina Francisca e sim fazer uma breve análise da importância da Cruz da Menina ao iniciar os meus estudos sobre o ex-voto como veículo de comunicação popular no campo de pesquisa na folkcomunicação, iniciados nos anos 70 do século passado e continuam porque as “promessas” deixadas nas salas dos milagres são fontes inesgotáveis de informações e estão em constantes processos de atualização. Nesses anos todos tenho cruzado vários caminhos rumo aos santuários, aos lugares de peregrinações populares catando ex-votos em diferentes regiões do Brasil e até em outros países, mas é aqui no Nordeste, onde estão as mais significativas observações etnográficas e empíricas para melhor compreender a importância desses objetos como patrimônio cultural material, imaterial e principalmente como veículo de comunicação popular e da  folkcomunicação.    

Sem dúvida, tudo começa com essa forte ligação que tenho com a Cruz da Menina e especialmente com a sala dos milagres, a exemplo do que afirma o poeta popular Antônio Américo: O quartinho dos milagres/é todo cheio de curas/mostrando grandes doenças/de diversas criaturas/dos aleijados que sofriam/vão deixar lá as molduras.

A Cruz da Menina: o início dos estudos dos ex-votos

Pq Religioso Cruz da Menina-Patos/PB
Foto do acervo pessoal
Foi em 1973 que a Cruz da Menina passou a ter maior importância na minha vida não só como um lugar religioso, mas como fonte de estudo para as minhas pesquisas na área da folkcomunicação e da cultura popular, tendo como ponto de partida os ex-votos como veículos de comunicação popular. Nessa época iniciava as minhas pesquisas como estagiário do professor Roberto Benjamim no curso de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (1970 -1975) e em uma das várias viagens de estudo à cidade de Pombal, onde realizávamos observações etnográficas sobre a Festa do Rosário e dos grupos folclóricos locais – Congos, Reisados e Pontões – com o objetivo de documentar as manifestações culturais tradicionais daquela cidade, aproveitei a passagem por Patos, que fica a cerca de 70 km antes do nosso destino, a cidade de Pombal, convidei o professor Roberto Benjamin para conhecer a Cruz da Menina. Encontramos a sala dos milagres cheia de ex-votos e até então eu não tinha a real dimensão da importância que aquelas peças teriam para os estudos e para as pesquisas no campo da comunicação social, da cultura popular e posteriormente da folkcomunicação.

Ex-votos
Foto do acervo pessoal
O professor Benjamim chamou atenção da quantidade e da qualidade dos ex-votos da Cruz da Menina, que poderiam ser uma referência para a pesquisa que planejávamos realizar. Retornando ao Recife, orientado pelo professor, fiz várias leituras sobre os ex-votos como expressão religiosa e artístico-cultural. Fiquei impressionado com a importância das “promessas”, assim denominados popularmente os ex-votos, para os estudos e as interpretações no campo de pesquisa das ciências da comunicação. Mas foi lendo o artigo de Luiz Beltrão, publicado em 1965 sobre O ex-voto como veículo jornalístico – na revista Comunicação & Problemas, que realmente surgiram as minhas primeiras reflexões para melhor compreender o novo modelo de comunicação vinculado às manifestações folclóricas que emergiam no campo da pesquisa inserida no contexto histórico sociocultural brasileiro e especialmente nordestino. Era, sem dúvida, o surgimento de uma teoria inovadora das ciências da comunicação e que tinha como objetivo estudar os diferentes aspectos socioculturais brasileiros. 

O professor pernambucano Luiz Beltrão explica e classifica a existência de outras categorias de comunicação jornalística além das vigentes na época, jornalismo informativo, jornalismo opinativo, como manifestações de comunicação de caráter popular: informação oral, informação escrita e informação opinativa difundidas por meios de comunicação do próprio povo e que têm uma vinculação direta entre o folclore e a comunicação popular e que mais adiante viria a se chamar Folkcomunicação. É daí que vem o conceito desse novo modelo de comunicação assim definido: Folkcomunicação é, assim, o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, ideias e atitudes da massa, através de agentes de opiniões e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore (BELTRÃO, 2002, p. 79). O artigo de 1965 sobre ex-voto foi o ponto de partida para a formulação da teoria da folkcomunicação desenvolvida por Luiz Beltrão e base fundamental para os meus estudos.

Cruzeiro do Pq Religioso C. da Menina
Foto do acervo pessoal
No artigo sobre ex-votos, Luiz Beltrão citando Luís Saia (1944) chama atenção para a existência em Patos na Paraíba de um cruzeiro de acontecido denominado de Cruzeiro da Menina. Os cruzeiros de acontecido eram erguidos em locais onde quase sempre tinha ocorrido uma tragédia, uma situação dramática como aconteceu com a menina Francisca. Luiz Beltrão não conhecia a Cruz da Menina, mas era fonte de referência dos seus estudos sobre ex-votos. Em 1974 conheci o professor Luiz Beltrão na cidade do Recife e, como ele sabia que eu era de Patos, conversamos diversas vezes sobre a Cruz da Menina e também da famosa cantoria de Inácio da Catingueira com Romano de Mãe D’Água, realizada na cidade de Patos em 1870 e que teve uma das versões publicada em 1903 por Rodrigues de Carvalho na primeira edição do seu livro Cancioneiro do Norte. 

Antiga Sala dos Milagres-Cruz da Menina
Foto do acervo pessoal
Em outubro de 1976 no período da Festa do Rosário a cidade de Pombal foi sede do I Encontro de Folclore da Paraíba organizado pela UFPB/PRAC/COEX e, então, como coordenador do evento, convidei o professor Luiz Beltrão para ser um dos expositores do encontro. Ele aceitou e pediu para visitar a Cruz da Menina quando da passagem por Patos. Na ida de João Pessoa para Pombal, numa Kombi, paramos na Cruz da Menina para uma visita e mesmo sendo rápida ele conheceu a capela e a sala das promessas. Nessa visita estávamos eu (Diretor da Divisão de Folclore/COEX/PRAC/UFPB), Luiz Beltrão (professor e jornalista), Roberto Benjamim (professor e Coordenador do Curso de Jornalismo da UNICAP), Altimar Pimentel (professor, teatrólogo e escritor) e Braulio Nascimento (Diretor da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro CNDFB/FURNATE/MEC). Todos ficaram impressionados com os ex-votos depositados na pequena sala das promessas da Cruz da Menina. Luiz Beltrão e Bráulio do Nascimento chamavam atenção para a importância de preservar parte do acervo de ex-votos da Cruz da Menina para os futuros estudos e que aquele local deveria ser um centro de referência da religiosidade popular. O doutor Bráulio voltaria mais duas vezes a Patos, assim como o professor Roberto Benjamin, em 1977 para o I Simpósio de Artesanato da Paraíba e em 1979 para o II Encontro de Folclore da Paraíba realizado simultaneamente nas cidades de Patos e Catingueira para lembrar o centenário da morte de Inácio da Catingueira e, em todas essas ocasiões, visitamos a Cruz da Menina. Na visita, em novembro de 1979, com a presença de professores, pesquisadores do folclore e da cultura popular, do prefeito de Patos Edmilson Mota e da secretaria municipal de educação professora Marlene Cesar, ficou estabelecido que seria estudada a possibilidade de transformar a Cruz da Menina num centro religioso popular e criar o museu dos ex-votos. O tempo passou e atualmente existe o Parque Religioso Cruz da Menina.  
A cata das promessas

Ex-votos do acervo pessoal
Sempre que eu estava em Patos ia com frequência à Cruz da Menina e quando possível. conversava com dona Odília Bezerra a zeladora da capela e da sala das promessas e ouvia longas histórias que ela contava sobre a cura das mais diferentes doenças e de tantas outras graças alcançadas. Falávamos também dos hábitos e costumes dos romeiros que vinham de várias localidades pagar promessas ou apenas visitar quando de passagem para Juazeiro do Norte/CE rumo ao Santuário de Padre Cicero.

Em 1977, num final de tarde chegando lá para mais uma visita, já como Diretor da Divisão de Folclore da Coordenação de Extensão-UFPB/PRAC/COEX, e com a intenção de recolher algumas peças para o projeto de estudos sobre os ex-votos que estávamos desenvolvendo, precisei de um certo tempo para enfrentar o receio ou mesmo o respeito que tinha em recolher as peças deixadas pelos devotos na Cruz da Menina

Ex-votos-Cruz da Menina
Foto do acervo pessoal
Quero dizer que em outras localidades já tinha recolhido ex-votos em salas das promessas, em cruzes de beira de estada e cemitérios, mas faltava tomar a decisão de recolher ex-votos na Cruz da Menina. Não foi uma tarefa fácil porque existia o lado religioso e do outro o pesquisador quando inesperadamente surgiu a grande oportunidade: cheguei á Cruz da Menina e para minha surpresa encontrei dona Odília arrumando centenas de peças de ex-votos para queimar na fogueira por falta de espaço na pequena sala das promessas. Solicitei permissão para ficar com alguns ex-votos e ela, admirada, perguntou para quê queria ficar com “aquilo”, fiz uma breve explicação e ela permitiu a retirada de uma quantidade significativa de ex-votos que assim foram preservados de serem queimados na fogueira. E foi nessa visita que tudo mudou. Todas as vezes que ia á Cruz da Menina conseguia ex-votos e assim fui organizando um importante acervo de peças. 

Ex-voto-Cruz da Menina
Do acervo pessoal
O acervo recolhido foi levado para COEX/PRAC/UFPB onde foi cadastrado e classificado, na sua maioria eram peças de madeira e de barro, feitas artesanalmente representativas de partes de membros e órgãos humanos (antropomorfos), de animais (zoomorfos) em menor quantidade e outros tantos eram fotografias, bilhetes, cartas e cadernos escolares (discursivos). As peças de ex-votos no monte para serem queimadas ou as que estavam na sala das promessas da Cruz da Menina eram representações simbólicas das doenças curadas na cabeça, nos braços e mãos, nas pernas e pés, no coração e seios, nos animais curados das enfermidades ou os perdidos e achados, as fotografias como registros visuais, os bilhetes, as cartas que narram os acontecimentos, os cadernos escolares por agradecimento pela passagem de ano letivo, e, já não tinham mais sentido para os pagadores de promessas que depois de depositarem na sala os ex-votos os romeiros retornavam às suas localidades. 

Portanto, a promessa estava cumprida e o agradecimento à menina Francisca estava feito, o objeto tinha sido deixado para trás e dona Odília necessitava de novos espaços na sala das promessas e assim era feito e assim foi organizado um acervo importante como referência para os diferentes estudos e pesquisas.

Ex-votos na Cruz da Menina
Foto do acervo pessoal
Em maio do mesmo ano (1977) o acervo recolhido na Cruz da Menina foi exposto numa grande exposição no hall da reitoria da Universidade Federal da Paraíba/UFPB que era ainda no prédio da Avenida Getúlio Vargas e próximo ao Parque Sólon de Lucena no centro de João Pessoa. A exposição realizada pela UFPB/PRAC/COEX e com o apoio da CNDFB/FUANRTE/MEC teve importante repercussão no meio cultural e na imprensa paraibana. Como parte do programa foi realizado um seminário sobre a importância do ex-voto na cultura brasileira e na religiosidade do catolicismo popular. A exposição e o seminário sobre o ex-voto deram início a uma aproximação da academia no campo de pesquisa e documentação das manifestações folclóricas e populares na Paraíba e a UFPB foi pioneira neste sentido. 

Duas importantes coleções de ex-votos recolhidos na Cruz da Menina, de 1977 até 1982 quando fiz a última coleta, atualmente fazem parte do acervo do NUPPO – Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular/PRAC/COEX/UFPB e do acervo do Museu do Folclore Edison Carneiro do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/CNFCP no Rio de Janeiro (http://www.cnfcp.gov.br/) e, na minha coleção tenho algumas peças de ex-votos também da Cruz da Menina.

Não foi uma tarefa fácil incluir na academia os estudos e as pesquisas do folclore e da cultura popular em meados dos anos 70 do século passado, estávamos entre a cruz e a espada, de um lado os folcloristas tradicionais que não aceitavam os processos de atualização – as inovações culturais – das manifestações folclóricas e populares com os avanços das novas tecnologias e dos meios de comunicação social, principalmente da televisão que avançava por quase todo território nacional e com forte influência nos hábitos e costumes dos brasileiros, inclusive nas manifestações culturais tradicionais. Por outro lado, determinados segmentos da academia achavam inadequado os estudos e as pesquisas do folclore e da cultura popular no âmbito das universidades. Mas um grupo de professores, de pesquisadores, de técnicos e de servidores da UFPB seguiu em frente ultrapassando grandes obstáculos e em 1978 fundaram o NUPPO –Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular que atualmente é uma das referências na UFPB nos estudos e nas pesquisas do folclore e da cultura popular (https://www.ufpb.br/nuppo).

 O ex-voto como veículo folkcomunicacional: uma breve análise

Sala dos Milagres-Cruz da Menina
Foto do acervo pessoal

As festas religiosas sagradas e profanas, as romarias e os lugares de pagamentos de promessas estão sempre presentes nas minhas pesquisas no campo da folkcomunicação e como não poderia deixar de ser os ex-votos como fonte de informação dos anúncios das promessas. Na atualidade os estudo e as pesquisas dos ex-votos na folkcomunicação ampliaram os campos de observações e análises com o objetivo de compreender essa zona hibrida entre as manifestações religiosas populares do pagamento de promessas com os ex-votos tradicionais e o pagamento de promessas com os ex-votos através de ferramentas midiáticas. Portanto, os ex-votos não são apenas representações simbólicas nas esculturas populares de madeira e de barro, como era antigamente a predominância nas salas das promessas, na atualidade as peças industrializadas de parafina, as fotos das câmeras digitais, CDs, DVDs, Pen Drives e velas eletrônicas estão espalhados pelas salas de promessas e não seria diferente na Cruz da Menina.

Com a globalização do mundo contemporâneo, ao invés da tão propagada homogeneização cultural, do desaparecimento das culturas locais, o que estamos vendo é uma nova ressignificação das manifestações locais e consequentemente do nosso folclore, das culturas populares. Um exemplo dessas novas clivagens é o aparecimento das diversidades folkcomunicacionais, da milenar manifestação religiosa dos ex-votos em santuários, capelas, grutas, cemitérios, cruzes de beiras de estadas, cruzeiros nos altos dos morros e em tantos outros lugares de romarias que se espalham em áreas urbanas e rurais de todas as regiões do país.

Ex-votos, fitas
Foto do acervo pessoal

Em dezembro de 2019 quando voltei ao Parque Cruz da Menina constatei que essa zona híbrida dos ex-votos tradicionais e os ex-votos midiáticos, os fabricados em série, estão juntos depositados nas duas salas das promessas, assim como as fitas estilo Nosso Senhor do Bom Fim, uma tradição marcante do povo baiano, estão também penduradas em diferentes lugares na Cruz da Menina. 

Na sala dos milagres a lógica semântica é construída pelos peregrinos, é um espaço quase sempre anexo ao santuário onde o pagador de promessa tem toda a liberdade de expressão. É o lugar onde são depositadas as promessas, os milagres representativos dos desejos dos devotos em relação ao santo ou santa de sua devoção. São práticas religiosas, que em determinadas ocasiões, transcendem as classes sociais onde encontramos agradecimentos de poderosos e ricos ao lado das graças recebidas também pelos marginalizados socialmente.  

Portanto, ainda alimento a esperança de que o Parque Religioso Cruz da Menina se fortaleça como mais um importante destino de romaria e o museu dos ex-votos como um centro de referência documental das histórias narradas através dos diferentes ex-votos ali deixados.


Este artigo foi originalmente publicado na Revista nº 8 do Instituto Histórico e Geográfico de Patos, edição de dezembro de 2020.


Referências

BENJAMIN, Roberto. devoções populares não-canônicas na América Latina: uma proposta de pesquisa. In: VI Congreso Latinoamericano de Ciencias de la Comunicación – ALAIC 2002. Santa Cruz de la Sierra, Bolivia, 2002.

BELTRÃO, Luiz. O ex-voto como veículo jornalístico. In: Comunicações e Problemas. Recife: ICINFORM/Universidade Católica de Pernambuco, n. 1, 1965. 72 p.

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressões de ideia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

MARTINS, J; TRIGUEIRO, O. O ex-voto: documento de fé no Santuário de Nossa Senhora da Penha. Cláudio A. de Oliveira, Clarisse Prêtre (organizadores). Se eu quiser falar com Deus: histórias e lugares dos ex-votos. Curitiba, PR: CRV, 2018. 

MEDEIROS, Antônio Américo. Cruz da Menina: história completa.

TIGUEIRO, Osvaldo Meira. O ex-voto como veículo de comunicação popular. In:

Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos/Cristina Shmidt (organizadora). São Paulo: Ductor, 2006.

TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. A cata das promessas: o ex-voto como veículo folkcomunicacional. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Patos. Patos – PB, v. 8l, n.8, dez. 2020.

SAIA, Luiz. Escultura popular brasileira. São Paulo: Gazeta, 1944. 


domingo, 14 de fevereiro de 2021

Hoje tem "Saca Rolha" no Céu

   (História pra contar)



"As águas vão

Rolar

Garrafa cheia eu

não quero ver

sobrar

Eu passo mão na

saca, saca, saca

rolha

E bebo até me

afogar

Deixa as águas

rolar"


Nessa minha viagem de três noites e três dias, para encontrar o imaginário e maravilhoso “País de São Saruê”, quando parei para dormir na terceira e última noite sonhei com o tradicional bloco do carnaval “Saca Rolha” fundado pelo meu pai, Seu Trigueiro, com um grupo de amigos e animado pela Orquestra do maestro Hermes Brandão, que animou por muitos anos o carnaval de Patos das Espinharas na Paraíba. 

Meu pai foi um grande folião, brincava os três dias de carnaval de rua, nos clubes sociais, era incrível, não parava, e no meu sonho ele estava inconformado, mas compreendia a atual situação que todos nós estamos vivendo, com a proibição do carnaval agora em 2021. 

Durante três noites e três dias, Seu Trigueiro, tentava com os santos a liberação da saída do seu bloco “Saca Rolha” lá no céu em caráter especial para esse domingo de carnaval já que aqui não podemos celebrar as festas momescas.   

A cidade de Patos ficava na expectativa para ver o bloco “Saca Rolha’ desfilar pelas ruas, as visitas nas residências dos foliões que convidavam, agendando o dia o horário, para receber o bloco com uma recepção festiva no interior das casas com muitas bebidas e comidas. O “Saca Rolha” por algumas horas fazia uma grande festa para os familiares e os convidados ao som de muito frevos e a tradicional marchinha de carnaval Saca Rolha que era o tema da origem do bloco de Seu Trigueiro.

Sonhei na terceira noite dessa viagem encantada que o “Saca Rolha” foi liberado para sair no domingo de carnaval e que iria animar a festa no céu, com a licença dos santos festeiros do nosso catolicismo popular, porque por lá não tem peste, não tem Covid-19, não tem tristeza, não tem doenças e muito menos mortes. 

Portanto, especialmente neste domingo de carnaval, com toda certeza, o bloco “Saca Rolha” vai sair pelas ruas do céu com muito mais animação, com mais alegria pois estão com Seu Trigueiro os filhos Alberto e Mário Trigueiro, os genros Roldão Caroca, Petrônio Lucena e Beca Palmeira que, como ele, foram grandes foliões.

E assim continua a história da minha vigem em busca do “País de São Saruê”, essa viagem encantada e maravilhosa para um lugar quase igual ao céu que não tem peste, não tem Covid-19, não tem doença e muito menos mortes.

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OBS: Foto - Bloco Saca Rolha (ao centro Seu Trigueiro),   Arquivo de família