segunda-feira, 19 de julho de 2021

Cramol: canto de mulheres portuguesas

As freiras cantam no coro,
As cachopas ao serão
Cantam as moças e velhas
Na noite de São João
(Cancioneiro de São João, Évora\Portugal)

 

Reencontrei a professora portuguesa Zé Justino, que é nossa parceira de investigação na Rede Folkcom – Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação, em 2012 na cidade de Campina Grande no Estado da Paraíba-Brasil, onde no mês de junho é realizada uma das maiores festas de São João do Brasil. O nosso encontro foi na XV Conferência Brasileira de Folkcomunicação e no IX Seminário: Os Festejos Juninos no Contexto da Folkcomunicação e da Cultura Popular, um evento científico cultural promovido pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Zé Justino é professora na Escola Superior de Comunicação Social e investigadora no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A investigadora portuguesa nos últimos anos tem contribuído para o desenvolvimento de estudos e intercâmbios com a Rede Folkcom sobre patrimônio cultural, literatura e folclore português no contexto da folkcomunicação.

Nesse seminário chamou muita atenção porque trazia novos conhecimentos sobre os festejos juninos em Portugal e quase tudo era novidade para a plateia constituída na sua maioria de professores, investigadores e estudantes da área do conhecimento da comunicação social, da folkcomunicação e das manifestações culturais tradicionais e do folclore no contexto da sociedade midiatizada.  A sua intervenção teve como tema principal: São João Batista na música tradicional portuguesa: São João na tradição popular portuguesa, em geral, e na música tradicional, em particular. Exemplos de usos de temas relacionados com São João, quer em comunidades rurais, quer urbanas, quer rurbanas [grifo nosso]”

A professora Zé Justino, relata as suas experiências como pesquisadora e ativista cultural com exemplos demonstrativos da importância das festas, das romarias, dos cancioneiros tradicionais portugueses e de tantas outras manifestações culturais populares e folclóricas que estão em plena atividade na sociedade contemporânea em constantes processos de modernização do rural ao urbano e até ao rurbano como é citado na ementa do trabalho apresentado. A professora Zé Justino usa o neologismo rurbano – criado pelo sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre – para definir socioculturalmente os habitantes das pequenas cidades e aldeias que são conceituadas como urbanas, mas na realidade continuam mantendo suas características de comunidades rurais economicamente e socioculturalmente. No Brasil a maioria das cidades tem menos de 50 mil habitantes e estão conectadas ao mundo globalizado pela comunicação social e pelas redes online, mas continuam mantendo o seu patrimônio cultural tradicional e folclórico em permanente processo de modernização. Os estudos de Zé Justino em Portugal estão em perfeita sintonia com o que estamos realizando na Rede Folkcom no Brasil.

 Na parte final do seu trabalho apresentado na conferência e no seminário da Rede Folkcom, a professora encanta a todos nós com o relato das suas experiências como investigadora, ativista cultural e participante do Cramol, um coral formado por mulheres que se dedica na divulgação das músicas e cantos tradicionais portugueses.

Zé Justino, na sua intervenção, mostrou que as tradições culturais e folclóricas de celebrações dos festejos juninos – para os Santos Populares – também são fortes em quase todas as regiões de Portugal e, finalizando a apresentação, narra a sua experiência com o coral Cramol exibindo um vídeo do grupo cantando as músicas tradicionais de São João em Portugal. 

A importância do coral Cramol em Portugal

Nos seus mais de 40 anos de atividade divulgando a música popular tradicional portuguesa, o Cramol é um testemunho da importância da criação cultural e estética do mundo rural vivido por mulheres nas horas do trabalho, do sagrado e da festa. O Cramol, foi fundado em 1979 por sugestão do maestro Domingos de Morais, com o objetivo de dar maior visibilidade ao canto tradicional e à sonoridade ancestral dessas manifestações culturais, que representam uma das inúmeras riquezas do patrimônio musical e do canto português.

O Cramol, uma organização autônoma, é constituído por cerca de 20 mulheres e é vinculado à Biblioteca Operária Oeirense (BOO), localizada no município de Oeiras, na área metropolitana de Lisboa. O grupo teve como diretor artístico o maestro Rui Vaz, que foi sucedido pelo maestro Luís Pedro Faro e desde 2003 tem a direção artística do maestro Eduardo Paes Mamede. O grupo Cramol já fez inúmeras apresentações em diferentes regiões de Portugal e em outros países da Europa, além de realizarem conferências, seminários, oficinas e cursos sobre o patrimônio cultural do cancioneiro popular português.  

O que caracteriza o grupo Cramol é a diversidade do seu repertório constituído de músicas e cantos interpretados por vozes de mulheres tendo como base as pesquisas dos etnomusicólogos Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, que por longos anos recolheram músicas, cantos e literatura oral populares tradicionais portugueses. 

Em 2019, o Cramol celebrou os 40 anos de existência com uma série de espetáculos, conferências em igrejas, museus, escolas e na BOO. Duas das fundadoras do grupo, Margarida Silva e Teresa Rebelo, em evento promovido pelo CCIF-Centro de Cultura e Intervenção Feminista e pela UMAR – União de Mulheres Alternativas, assim definem o grupo:

O Cramol dedica-se ao canto tradicional de mulheres por ser, em si mesmo, um testemunho de um património único, de cultura e criação estética das mulheres rurais. Fundámos o Cramol para preservar essa riqueza. Para mostrar o valor intrínseco da voz, do canto que as mulheres nesses territórios criaram, produziram. Essa fala de mulheres, uma forma de dizer e transmitir saber, um saber assente na afirmação do sentido da terra, da dureza do trabalho, da expressão da vida e do espírito de comunidade. Criámos o Cramol para dar a conhecer como o canto de mulheres foi, (é?) um instrumento da construção de si mesmas, das comunidades da sua pertença e presença evidenciando o seu poder de ser ator como mulheres. Para revelar como o canto, essa fala de mulheres, é modo de se transcender como tal e persistir, dando visibilidade a uma existência quotidiana de autonomia e liberdade.

E continuam:

Como dissemos, nós, as mulheres que fazem o Cramol, cantamos o que herdámos, o nosso património comum, especificamente no que respeita ao legado deixado pelas mulheres. Um canto que nasce da terra e de quem a revolve, a habita e trabalha. E dela muito espera, consoante o tempo. E desta experiencia vivida na carne nasceu o canto, melhor dizendo, os muitos cantos que povoam o corpo, o pensamento, desejos e falas das mulheres. A memória dessas sonoridades interroga as circunstâncias existenciais, sociais e culturais de hoje abrindo novas possibilidades performativas e de sentido às falas no feminino. A voz e o corpo e as memórias que habitam o canto, enquanto totalidade que liberta, invoca diversas dimensões da experiência humana que importa explorar e debater.

O Cramol encanta cantando por onde passa, contando a história de vida dessas mulheres trabalhadeiras e pela música narra os seus hábitos, seus costumes, seus sentimentos e suas crenças. O grupo interpreta a vida dessas mulheres, que como muitas outras,  têm os seus momentos de alegrias e tristezas, de suas lutas e aflições, de amores e desamores e tudo isso sem apelar para o lado apenas lúdico e pitoresco ou do espetáculo dramático de lamentações como uma diversão “para turista ver”. Muito pelo contrário,  o Cramol canta a vida de mulheres que herdaram dos seus antepassados o patrimônio cultural e continuam contando histórias que são removidas das raízes rurais para os espaços de sociabilidade urbanos ou rurbanos na contemporaneidade.    

Veja aqui mais um vídeo do Cramol.