quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Festas Populares em Tempo de Pandemia

 Este foi o tema da entrevista que dei ao  professor doutor Antonio Fausto Neto para o CISECO - Centro Internacional de Semiótica e Comunicação e que compartilho por aqui.




domingo, 12 de julho de 2020

Luiz Antônio Barreto uma amizade de 36 anos


Roberto, Osvaldo, Luiz Antonio e Bráulio
Em maio de 1976 fui ao Primeiro Encontro Cultural de Laranjeiras, acompanhando o meu professor Roberto Benjamim, do curso de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco. A viagem no fusquinha de Roberto foi mais uma aventura na nossa vida de andarilhos para observar as manifestações folclóricas brasileiras e, especialmente, nordestinas. Sabíamos que em Laranjeiras estariam reunidos importantes estudiosos do folclore e da cultura popular das diferentes regiões do país e, aquela seria uma oportunidade para ampliar os nossos contatos e novos conhecimentos.  Ficamos hospedados no Hotel Fleche, que era um ponto de apoio da Empresa de Ônibus Itapemirim, distante do centro de Laranjeiras. 

Não fomos como convidados da organização do evento e achamos melhor ficar mais afastados, mas com a intenção de, aos poucos, nos aproximarmos dos convidados e dos grupos folclóricos que lá se encontravam. Eu, um jovem que tinha colado grau no curso de jornalismo em dezembro de 1975 estava deixando o período de estagiário para assumir como professor da Universidade Federal da Paraíba, e o professor Roberto Benjamin já era referência no campo dos estudos do folclore, conhecido de alguns ilustres convidados e eu  estava iniciando a minha  trajetória de pesquisador, que se alongou por toda minha vida acadêmica e sem dúvida foi no Encontro Cultural  de Laranjeiras que dei a partida inicial para as pesquisas empíricas e teóricas.     

Chegando em Laranjeiras próximo do horário previsto para abertura do evento encontramos os professores e pesquisadores pernambucanos Valdemar Valente e Mário Souto Maior, que além do Roberto Benjamin eu também os conhecia e foi um grande alívio para mim encontrar os dois ilustres convidados que  animadamente faziam elogios às nossas atividades como estudiosos e pesquisadores do folclore ao nos  apresentarem a Luiz Antônio Barreto, idealizador e coordenador do evento, e a Bráulio Nascimento, presidente da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro/CDFB. Esse encontro foi um acontecimento que marcou muito a minha vida como professor, pesquisador do folclore e da cultura popular, da comunicação de massa e da folkcomunicação, campos de estudos de meu interesse até hoje.

Roberto Benjamin, foi meu professor na graduação no curso de jornalismo e na pós-graduação como orientador no mestrado e sempre fez parte desde o início da minha formação acadêmica. Mas a partir daquela noite de 28 de maio de 1976 Luiz Antônio Barreto e Bráulio Nascimento incorporaram, com muita honra, o time dos meus grandes mestres e com eles sempre estava apreendo como fazer uma investigação de campo, ser ético e respeitar os detentores dos sabres populares. E assim foi por longas décadas de convivência, de amizade e respeito, muitas vezes com divergências de opiniões e definições de conceitos.

Este depoimento é para prestar a minha homenagem a Luiz Antônio Barreto, porém não podia deixar de citar esses dois importantes mestres e amigos, Roberto Benjamin e Bráulio Nascimento, que quase sempre estávamos juntos participando de congressos, simpósios, reuniões, projetos de pesquisas e de tantos outros eventos culturais em diferentes lugares, mas foi nos encontros culturais da histórica cidade de Laranjeiras que nossa amizade consolidou-se e junto vieram tantos outros que gostaria de citar, até porque continuamos mantendo contatos e resguardando o legado deixado por Luiz Antônio Barreto, assim como: Jackson da Silva Lima(SE), Algaé D’Ávila Fontes (SE), Beatriz Góis Dantas (SE), Lindolfo Amaral (SE ), Luiz Fernando Soutelo (SE), Antônio Alves do Amaral (SE), Verônica Nunes (SE),  José Maria Tenório (AL) Cáscia Frade (SP), Maria Thereza de Camargo (SP), Marlei Sigrist (MS), Toninho Macedo (SP), Severino Lucena (PE), José Fernando Sousa e Silva (PE), Affonso Furtado (RJ), Eleonora Gabriel (RJ) José Ronaldo de Menezes – o mestre Zé Rolinha (SE) e tantos outros que constituem uma rede de estudiosos e pesquisadores que deram significativas contribuições para os novos entendimentos do folclore e da cultura popular na atualidade.  

Luiz Antônio Barreto, historiador, jornalista, folclorista e um importante aglutinador de pessoas com opiniões divergentes e com essa capacidade mediadora fez do Encontro Cultural de Laranjeiras um dos mais importantes e longínquos eventos temáticos sobre o folclore e cultura popular no Brasil.  O encontro de Laranjeiras rompeu a barreira dos 40 anos ininterruptos, por lá passaram ilustres intelectuais brasileiros e estrangeiros que deixaram importantes contribuições na formação de várias gerações de estudiosos, de pesquisadores e principalmente de jovens, assim como eu que cheguei para participar do primeiro encontro cultural como aprendiz, continuo participando e aprendo cada vez mais.

O Encontro Cultural de Laranjeiras, possibilita o diálogo para uma melhor compreensão de novos entendimentos do folclore e da cultura popular, onde se ouvem opiniões diversas, narrativas de novas experiências, de importantes ideias e de fundamentações teóricas (palestras, seminários, etc.) e práticas (oficinas, minicursos e as trocas de saberes com os mestres populares). Luiz Antônio Barreto, foi o grande idealizador do Encontro Cultural de Laranjeiras e sempre teve o apoio dos seus pares sergipanos e de tantos outros estudiosos de diferentes regiões do Brasil, porque acreditavam na sua proposta, no seu projeto de pesquisa, de registro, de divulgação e de apoio aos grupos folclóricos. Era impressionante o poder de articulação e de diálogo que Luiz Antônio tinha com autoridades públicas e com os empresários, não media esforços para conseguir o apoio, os patrocínios necessários para a realização do encontro de Laranjeiras, é bom que se diga, sem fazer concessões dos seus objetivos e mesmo em tempo de crises políticas e financeiras o evento acontecia.

Ao longo dos anos o encontro foi ampliando o seu espaço para divulgar Laranjeiras como uma cidade detentora de importantes patrimônios culturais materiais e imateriais. Um dos principais objetivos do encontro é reunir estudiosos e pesquisadores da nossa cultura popular para conhecer de perto as manifestações dos grupos folclóricos, as igrejas, os casarões, o mercado, o trapiche e as ruas históricas de cidade. O encontro cultural contribuiu ainda mais para a projeção de Laranjeiras no cenário nacional e internacional. Assim como disse Luiz Antônio Barreto:

Quando a somação do Governo do Estado com a Prefeitura Municipal, apoiada pela então Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, Laranjeiras foi a destinatária de um conjunto de ações, em torno do I Encontro Cultural, como a restauração da velha Casa de Laranjeiras e instalação do Museu Afro Brasileiro de Sergipe, iniciando uma série de restauros que devolveu ao uso público monumentos sociais, como o Mercado da cidade, o Trapiche, a Casa da Câmara, bem como recuperou ruas de calçamento de pedra, enquanto pavimentou outras, tornando melhor o piso da cidade. Com o Encontro Cultural de Laranjeiras Sergipe foi grande beneficiado, porque foram gravados, pela primeira vez, os sons dos grupos folclóricos e editados discos, livros, cadernos de folclore, dando visibilidade a um variado elenco de grupos, cada um com sua característica (citação do artigo publicado em 01/01/2000/Infonet).

O Encontro Cultural de Laranjeiras não pertence só ao povo sergipano é um patrimônio de todos nós, é uma sala de aula aberta aos estudiosos, pesquisadores, aos mestres e brincantes das manifestações das culturas populares. Como afirmou Bráulio Nascimento:

Na verdade, não é possível falar do desenvolvimento dos estudos da cultura popular no Brasil sem passar por Laranjeiras. Muitas ideias aqui expostas e debatidas constituíram o núcleo de trabalhos de maior fôlego, que motivaram e estimularam debates em outros pontos do País, em outros contextos culturais (citação do artigo publicado em 2005 nos 30 anos do Encontro Cultural).

 

No encontro de 1977 cerca de 200 grupos estiveram presentes durante a realização do evento e Laranjeiras passou a se chamar, simbolicamente a capital do folclore brasileiro no mês de janeiro. A professora e pesquisadora Aglaé Fontes, na apresentação da publicação comemorativa dos 20 anos do encontro afirma que:

Ao longo dos 20 anos O Encontro Cultural de Laranjeiras, vem se constituindo um foco de resistência cultural em defesa do folclore. Com as mais diversas formas de ver, pesquisadores e estudiosos da cultura popular, apresentam, a partir de temas, informações e aprofundamento de estudos, que fazem do simpósio um fórum aberto das discussões de ideias (citação do texto de apresentação da publicação dos 20 anos do encontro).

 

Portanto, o evento foi crescendo tomando demissões que extrapolam o território da cidade histórica de Laranjeiras e do seu entorno, ultrapassando o território sergipano e passa a ser reconhecido por instituições culturais, estudiosos e pesquisadores nacionais e internacionais. Sou testemunha ocular da história do Encontro Cultural de Laranjeiras, não só por participar do primeiro realizado em maio de 1976 e em tantos outros, mas também fazia parte de um pequeno grupo que gozava da  amizade, da confiança e do carinho de Luiz Antônio conquistados durante os 36 anos de muitos encontros alegres e tristes porque nem tudo foi festa. Nos últimos anos Luiz Antônio já não participava do encontro em Laranjeiras achava que o objetivo principal do evento era a valorização dos grupos folclóricos tradicionais e que estavam sendo menosprezados pelas autoridades locais. Ou seja, os grupos folclóricos não são mais os protagonistas do evento, agora são os coadjuvantes da festa. 

O tema central do encontro em  2018 foi, Nosso palco é a rua, mas os camarotes e os palcos patrocinados pela administração municipal é que tomaram conta das ruas de Laranjeiras para apresentações de shows artísticos predominantemente de cantores e cantoras de músicas sertanejas e os grupos folclóricos  tradicionais ficaram renegados e a festa já não é mais deles com era desejo do seu idealizador e de sua equipe de apoio. Nada contra qualquer gênero de música e de show artístico, mas cada qual no seu tempo e espaço e Barreto não concordava com a secundarização dos grupos folclóricos e com a falta de apoio a eles.   

O tempo e o espaço do Encontro Cultural de Laranjeiras, das manifestações dos grupos folclóricos, da Festa de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário celebrada no dia de Reis, deveria ser respeitado pelas autoridades civis e religiosas. O volume alto do som, que durante o dia ecoa dos palcos, abafava as falas dos conferencistas e dos debates que se realizavam no simpósio e, de noite, abafava as músicas e danças dos grupos folclóricos. Mas, assim mesmo a Taieira, a Chegança e o Cacumbi saíram em cortejo, no domingo pela manhã, rumo à igreja de São Benedito para participar da missa de coroação das rainhas de Nossa Senhora do Rosário e da Taieira, percorrendo as ruas desviando ora dos automóveis, ora dos palcos instalados nas esquinas, nas praças e até no meio das ruas numa verdadeira caminhada de obstáculos até chegarem à igreja. E essas atitudes adotadas pelas últimas administrações do município de Laranjeiras foram afastando Luiz Antônio do encontro cultural. 

O meu último encontro presencial com Luiz Antônio Barreto, foi em janeiro de 2012 no Instituto Tobias Barreto de Educação e Cultura-ITBEC, instalado no prédio da Biblioteca Central da Universidade Tiradentes, quando estava totalmente dedicado às atividades do ITBEC cheio de ideias para novos projetos de curto e médio prazos, mas não sentia aquele entusiasmos quando falávamos do encontro cultural de Laranjeiras, das políticas públicas de apoio às culturas tradicionais. Foi um dia de boas conversas, de recordação dos acontecimentos que participamos, a saudade de alguns amigos que não estavam mais aqui com a gente, isso tudo durante as quase duas horas andado pelas instalações do ITBEC. Fomos almoçar e continuamos conversando e já no final da tarde deixou-me no hotel e nos despedimos com um até breve e jamais poderia imaginar que seria o nosso encontro final. Foi assim a nossa amizade durou de 1976 até o dia 17 de abril de 2012 quando recebi a notícia do seu falecimento por telefone da nossa amiga Aglaé Fontes.

        Não poderia deixar de registrar aqui o projeto Contos Populares Brasileiros, com administração cultural de Luiz Antônio Barreto, que na época do seu desenvolvimento era o Superintende do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco-Fundaj, que envolveu diferentes instituições culturais do Brasil e de Portugal. Mais uma vez Luiz Antônio me faz uma provocação para mais um desafio o de assumir com o professor e pesquisador Altimar Pimentel a coordenação do projeto na Paraíba. E como resultado do desafio iniciado em 1987, com a supervisão do professor Bráulio do Nascimento, o trabalho foi publicado em 1996 pela Editora Massangana da Fundaj.

O Encontro Cultural de Laranjeiras, possibilitou e continua possibilitando, nestes anos todos, significativas reflexões sobre a cultura tradicional na contemporaneidade, continua contribuindo na formação de jovens estudiosos e pesquisadores do folclore e da cultura popular brasileira e especialmente nordestina.

E assim Luiz Antônio Barreto deixa o seu legado, não só nas importantes publicações em livros, nos anais dos encontros de Laranjeiras, nos colóquios de Tobias Barreto, nos seminários de Estudos Medievais, em incontáveis artigos publicados em jornais, não só como secretário de educação e de cultura, mas também como incentivador e apoiador de diferentes eventos culturais, organizador e criador do Instituto Tobias Barreto de Educação e Cultura, uma de suas maiores paixões.

E por último deixo aqui a seguinte mensagem de Luiz Antônio Barreto sobre o encontro cultural como uma demonstração de respeito e admiração que tinha pela histórica cidade de Laranjeiras e do simpósio cultural: 

O Encontro Cultural de Laranjeiras é um campus avançado de cultura que está ensinando a pensar o povo e sua existência no tempo histórico e no espaço da região com suas tipicidades que, em muitos pontos, converge inteira para espelhar o Brasil. Talvez falte apenas  um detalhe: é a consciência da importância do Simpósio para Sergipe e para a comunidade intelectual brasileira (citação do texto:  Laranjeiras, a Revisão Religiosa, publicado na edição comemorativa dos 20 anos do Encontro Cultural de Laranjeiras).  

Os seus livros, artigos, suas ideias, seus conceitos e métodos de pesquisas continuam atualizados e disponíveis em centros culturais, bibliotecas e redes sociais.  

Tabatinga/PB, outono de 2020.

 

Texto originalmente escrito para a Revista da Academia Lagartense de Letras, nº6, dossiê Luiz Antonio Barreto, acessível em: http://www.allrevista.com.br/index.php/allrevista/issue/view/7



quinta-feira, 25 de junho de 2020

Eu tenho medo da Covid-19

Com todo respeito: você também?


Entre o caos e o desassossego,

Eixos do mal,

Desordem mundial,

Há tanta gente quilhada.

Com todo respeito

Jorge Palma

(cantor e compositor português)


Como pertenço ao grupo de risco, idoso com mais de 70 anos e hipertenso, estou cumprindo rigorosamente o isolamento social em casa, estou afastado da afetividade presencial dos familiares e dos amigos, mas acompanhando os acontecimentos do mundo e aqui do Brasil. E neste isolamento ouvindo a música Com todo respeito, do grande cantor e compositor português Jorge Palma, o que me chamou atenção é o conteúdo da letra bastante apropriada para este período de pandemia. Assim, com todo respeito à Covid-19, vou continuar em casa e aguardando o final da pandemia.

Sou professor associado aposentado da Universidade Federal da Paraíba/UFPB, depois de trabalhar mais de 30 anos, fiz a opção de ficar mais tempo em casa no meu tempo de ócio, estudando e produzindo os meus trabalhos. No meu isolamento social, em época de pandemia, não sinto tanta falta do mundo lá de fora. Estou mais tempo no espaço privado da casa do que no espaço público da rua. Na minha casa tenho os espaços, as coisas que mais gosto de fazer, sempre ao lado de Rosinha minha companheira há mais de 40 anos, minha amiga, mãe dos meus filhos e um ser humano fantástico que tanto amo. Só lamento que nem todos possam dizer a mesma coisa. O que mais incomoda é o distanciamento dos meus filhos, das noras e dos netos, que moram longe da gente e tornou-se impossível visitá-los em época de pandemia.  

Portanto, ficar em casa é um hábito que tenho muito antes das recomendações para evitar a Covid-19, até porque já não vou com frequência ao cinema, ao restaurante, ao boteco, nem a eventos culturais e, visitas e festas na casa de familiares e amigos, só em ocasiões especialíssimas. Em casa estou quase sempre na biblioteca, na sala vendo televisão ou assistindo filmes, ouvindo rádio, ou fazendo tudo ao mesmo tempo até porque não sei ler e nem escrever com silêncio. E tem mais, quando necessário ajudo nas atividades domésticas, são essas coisas que atualmente mais gosto de fazer e nunca estou de pijama.

Agora o mundo está vivendo uma nova experiência com o ataque da Covid-19 que se espalha por quase todas as localidades provocando uma pandemia que marcará para sempre a história da sociedade humana no século XXI. Como não poderia deixar de ser o Brasil é também afetado pelo novo coronavirus que está intrigando o mundo científico, driblando os meios de comunicação social com a desinformação – fake news – e os demais campos do conhecimento. A Covid-19, uma coisa invisível a olho nu, está causando grandes estragos nos sistemas de saúde e econômico em escala planetária.  

A reboque da crise sanitária provocada pela pandemia evidencia-se a fragilidade das instituições (saúde, educação, cultura, economia, política e tantas outras), dá mais visibilidade às desigualdades sociais existentes não só nos países pobres, mas também nos países ricos. E como consequência do processo de globalização e dos grandes negócios para atender as demandas desenfreadas de consumo exigidas pela sociedade atual, estamos vivendo, cada vez mais, grandes crises em períodos mais próximos uns dos outros. Estão cutucando a natureza com vara curta.

A pandemia provocada pelo novo coronavirus pegou as pessoas em cheio, no primeiro momento, as das classes sociais privilegiadas, as que viajavam a negócios ou turismo e, gradativamente, foi saindo perigosamente do centro para a periferia. Aí o mundo ficou assustado com o “diabinho” do novo vírus que não é de esquerda e nem de direita.   

A Covid-19 é democrática, afeta pessoas de todas as classes sociais, não faz distinção de gênero, cor, faixa etária, ideologia, religião, umas mais, outras menos, umas ficam curadas e outras morrem nos leitos dos hospitais públicos e privados, ou mesmo nos leitos de suas casas. O novo coronavirus infecta quem está mais próximo e mais vulnerável. O que não é democrático são as alternativas de atendimento para a maioria das pessoas contaminadas, que ficam longas horas na fila dos hospitais à espera do atendimento médico ou do acesso aos respiradores.

Numa democracia os momentos de crise provocam divergências nas várias instituições de um país e a crise provocada pela pandemia não é diferente, são intensos os debates nos meios científicos, especialmente da área da saúde, nos meios econômicos, nos embates políticos, mas quando a crise provoca o desordenamento gerencial, a falta de diálogo e de lideranças as consequências são mais devastadoras. É lamentável o que está acontecendo aqui no Brasil.

A crise provocada pela Covid-19 tem grandes consequências na economia e afetará a curto e a médio prazos diferentes países, mas aqui no Brasil, além de queda, coice, como dizia a minha avó quando o azar é grande demais. Melhor dizendo, além da crise sanitária e econômica temos o azar de uma crise política grave na hora errada e desnecessária neste momento em que todos nós somos atingidos pela pandemia. Pois é, no momento que a tal curva da pandemia ora sobe, ora desce, aqui o governo federal recomenda uma coisa, os governadores dizem outra coisa, os prefeitos determinam outra coisa, o poder judiciário não concorda com as coisas ditas, a OMS afirma que a pandemia na América do Sul ainda não atingiu o pico e de coisa em coisa, ditas e não ditas,  de decretos e mais decretos  o Brasil vai caminhando, provavelmente, para ganhar a tríplice coroa das piores crises conjuntas: sanitária, econômica e política de 2020. E ainda tem uma quarta crise, a psicológica – do medo – que atinge pessoas assim como eu, do grupo de risco, que têm medo de sair de casa, do botão do elevador, do corrimão da escada, de ir ao supermercado, à farmácia, à padaria, da aproximação de familiares, de amigos, de vizinhos, de espirros, de tosses e quase tudo que acontece no nosso entorno. 

E no vai e vem dessa crise política a crise sanitária prolonga-se e consequentemente a economia do país agrava-se. A crise política é deles, mas contamina todo povo brasileiro. 

Estamos sofrendo com essa pandemia, principalmente os marginalizados socialmente. Ou seja, os mais pobres e os invisíveis socioeconômicos. É chegada a hora para soluções e entendimento entre os poderes da república para que todos juntos possam vencer a Covid-19, o nosso inimigo atual. Pois é, não dá mais para esperar, o tempo está passando e a pandemia alongando-se. E com todo respeito, não tenho a minha vida para chafurdo de ninguém. É por isso que continuo procurando o País de São Saruê .


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quinta-feira, 4 de junho de 2020

Isso vai passar



Isso vai passar
vou cuidar da roseira do jardim
que deixei
isso vai passar
vou ler o livro marcado nas páginas dezenove,
quarenta e sete
que deixei
isso vai passar
vou abraçar Rafa e Manu
que deixei
isso vai passar
vou encontrar familiares e amigos
que deixei
isso vai passar
vou caminhar na praia
com Rosinha
que deixei
isso vai passar
vou a padaria comprar o pão da tarde
que deixei
isso vai passar
vou tomar uma taça de vinho da garrafa
que deixei
isso vai passar
vou tomar chopp no boteco
que deixei
isso vai passar
vou fazer a Mega-Sena na casa lotérica
que deixei
isso vai passar
vou ver um Fla x Flu na TV
que deixei
isso vai passar
vou ver filme no cinema
que deixei
isso vai passar
vou apertar o botão do elevador
que deixei
isso vai passar
vou esperar o fim da pandemia
se a crise política aqui deixar
isso vai passar.
E você o que vai fazer quando tudo isso passar?

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Vou morar em São Saruê

lá não tem isolamento social nem Covid-19



Folheto Manoel Camilo das Santos 1981
Sonhei que estava indo para o país de São Saruê. Foi uma viagem longa de sete dias e sete noites, passei por várias cidades, por estradas cobertas de neve, atravessei um grande deserto, depois uma floresta tropical até chegar ao semiárido do Nordeste brasileiro. Dei muitas voltas por mais de três dias e três noites e não encontrei esse país encantado. Foi mais um pesadelo na madrugada de isolamento social e medo do Covid-19 me pegar.
Mas, onde será que fica esse país tão bom de morar? Quem sabe onde fica o caminho para São Saruê? Não localizo pelo GPS e lá também não tem sinal de celular. Meu Deus! Mostre o caminho para chegar a São Saruê, eu quero lá ficar até que passe esta pandemia que fez o mundo parar. Não tem jeito, São Saruê é um lugar que só existe no imaginário da cultura popular e do nosso folclore.
Não tem passaporte nem visto de entrada e sendo assim fico aqui mesmo no meu isolamento social tentando escapar já que sou do grupo de risco e tenho que me cuidar. Mas, depois que tudo isso passar vou continuar procurando até encontrar esse país imaginário bom de se morar.  


As possíveis origens desse lugar encantado


Na Europa medieval surgiram narrativas tradicionais orais transmitidas de geração em geração que contavam a lenda de um povo que morava num lugar imaginário, provavelmente localizado no Norte da França. Quem vivia nesse lugar maravilhoso tinha liberdade de sair de casa a qualquer hora, não passava fome, não precisava trabalhar, estava livre de todas as doenças e não ficava esperando a morte chegar.
Esse lugar maravilhoso chama-se Cocanha, criado provavelmente por volta dos séculos XII e XIII quando o Velho Mundo passou por importantes transformações socioculturais, econômicas, políticas, religiosas e de grandes mobilidades dos diferentes povos na propagação do Cristianismo pelas Cruzadas e pelos Peregrinos rumo aos lugares sagrados. 
A narrativa desse lugar imaginário percorreu cidades, aldeias, comunidades rurais e foi enriquecendo as lendas, os contos, as músicas, as poesias da tradição popular e do folclore na Europa medieval. As lendas que contavam a vida dos moradores desse lugar fabuloso, onde todos viviam felizes, em harmonia com a natureza, com muito amor, paz e sossego percorreram, durante séculos, a Europa e chegaram muito tempo depois a quase todas as partes do mundo, inclusive ao Novo Mundo. 
O povo por onde passava contava as histórias desse lugar encantado e que atravessaram a Europa pelas extensas redes orais de comunicação, nas múltiplas estruturas narrativas das tradições populares que foram, no decorrer de tempo, incorporando novos conhecimentos e novas experiências locais.
E como quem conta um conto sempre aumenta um ponto, os boatos do lugar encantado foram crescendo e cada vez mais o desejo do povo daquela época – Idade Média – era de um dia poder viver lá para se livrar da vida cotidiana do mundo verdadeiro (doenças, fome, guerra, morte etc.).
Assim, essa história contada de boca em boca por várias gerações, anos depois chega a Santiago de Compostela e expande-se por toda a Península Ibérica. Séculos depois atravessou o Atlântico e chegou provavelmente ao Brasil no período dos grandes descobrimentos por volta dos séculos XVI e XVII. Consolida-se como texto tradicional de comunicação popular e do folclore no Nordeste no início do século XX e continua viva no imaginário do povo brasileiro em pleno século XXI, nas diferentes expressões culturais tradicionais e especialmente na literatura de cordel.  


São Saruê: um país utópico no sertão nordestino


Mas, não podemos afirmar com precisão como as narrativas sobre esse lugar das mil e uma fantasias chegaram ao Brasil, se foi com os colonizadores portugueses, espanhóis, holandeses ou até mesmo pelos franceses que estiveram, por maior ou menor tempo no território brasileiro. Todos esses povos eram portadores de diferentes narrativas desse lugar imaginário cheio de encantamentos, de maravilhas e da juventude eterna.
Os modos de pensar e agir de muitos nordestinos, principalmente do homem do Sertão, conservam características desse jeito de ser do homem medieval, sua cultura e sua convivência com as diversidades (seca, enchente, fome, fartura, violência, pobreza, doença, analfabetismo, festa, morte e muita fé religiosa). E assim, o sertanejo vive na esperança, na fé que um dia tudo vai melhorar e esse lugar encantado cheio de simbolismo funciona como um contra ponto da vida cotidiana do mundo verdadeiro para viver o cotidiano de um mundo ficcional. Mas, não significa dizer que o nordestino ou o sertanejo não seja trabalhador, lutador e resistente às diversidades da vida cotidiana do mundo real, muito pelo contrário, os lugares encantados, utópicos narrados nas manifestações culturais tradicionais do povo nordestino estão cheios de simbolismos irônicos, satíricos, cômicos e críticos das injustiças sociais e econômicas.
São essas diversidades persistentes há séculos no Nordeste que o tornam até hoje um território fértil de repertórios de narrativas medievais, que são atualizadas e veiculadas nas redes tradicionais de comunicação popular e do folclore, contadas e cantadas nas festas religiosas e profanas. E como não poderia deixar de ser esses valores culturais estão fortemente expressos na literatura de cordel onde entre as inúmeras abordagens temáticas vamos encontrar o da Cocanha ou do lugar encantado de São Saruê.
Em épocas passadas as narrativas dos acontecimentos nesse lugar encantado eram quase exclusivamente articuladas pelas redes orais de comunicação presentes nos mitos, nas lendas e fábulas, nas poesias, nas músicas e danças, nos dramas e comédias. Na atualidade essas narrativas vão incorporando significados de diferentes pontos de vista, novos conhecimentos e novas experiências agora articuladas pela oralidade, pela escrita e pelo audiovisual. Melhor dizendo, são narrativas da tradição cultural incorporadas às redes de comunicação veiculadas em livro, televisão, filme, redes sociais e em tantas outras ferramentas midiáticas, porque são temáticas carregadas de conteúdos de desejos, de alegorias e consequentemente de importante interesse da demanda de consumo popular.


A Viagem a São Saruê: um lugar de encantamento


As narrativas contadas desse país habitado por povo feliz rompem a barreira do tempo, viajam por muitos lugares, no carro da brisa, transformam-se em cordel, um dos mais vendidos no Nordeste brasileiro, pela veia poética do paraibano Manoel Camilo dos Santos.
Quando escreveu e publicou o folheto Viagem a São Saruê, na primeira metade do século passado, Manoel Camilo reacendeu no imaginário coletivo do povo nordestino o desejo de viajar um dia para esse lugar lendário que ele ouvia falar desde pequenino. Assim, o poeta narra a sua longa viagem a São Saruê:
Gravura de José Costa Leite. Folheto 1977
Iniciei a viagem
as quatro da madrugada
tomei o carro da brisa
passei pela alvorada
junto do quebrar da barra
eu vi a aurora abismada (...)
Avistei uma cidade
como nunca vi igual
toda coberta de ouro
e forrada de cristal
ali não existe pobre
é tudo rico em geral. 


A identificação da cidade é uma placa de barra de ouro e com letras cravadas de brilhantes dizendo: São Saruê é este lugar aqui. Em São Saruê não tem desigualdade de classe todos são ricos, não existe déficit de habitação, só tem casa de luxo para morar:

Gravura do Folheto de 1981
Uma barra de ouro puro
servindo de placa eu vi
com as letras de brilhante
chegando mais perto eu li
dizia: São Saruê
é este lugar aqui (...).

Lá os tijolos das casas
são de cristal e marfim
as portas barras de pratas
fechaduras de “rubim”
as telhas folhas de ouro
e o piso de cetim.


 
Neste país encantado não há fome, é um lugar cheio de fartura, nos rios corre leite, tem açudes de vinho e as barreiras de carne assada, as lagoas de mel de abelha, os atoleiros de coalhada, os montes de carne guisada, as pedras são de queijo e rapadura, feijão dá feito mato e já cozinhado. Em São Saruê roupas, chapéus sapatos e dinheiro são coisas que brotam nas árvores. Não existe analfabetismo, as crianças já nascem falando e sabendo ler. Assim, continua Manoel Camilo narrando o que viu:  

Gravura de José Costa Leite. Folheto 1977
Sítios de pés de dinheiro
que faz chamar atenção
os cachos de notas grandes
chega arrastam pelo chão
as moitas de prata e ouro
são mesmo que algodão (...)

Lá quando nasce um menino
não ‘dar’ trabalho a criar
já é falando e já sabe
ler, escrever e contar
salta, corre, canta e faz
tudo quando se mandar.

Na cidade encantada existem vários lugares magníficos e tem até o rio de nome o banho da mocidade, ou seja, a encantada fonte da juventude, desejada por diferentes povos desde a antiguidade aos nossos dias, poderá ser encontrada em São Saruê. O poeta paraibano assim descreve a fonte e os lugares magníficos de São Saruê: 
  
Gravura de José Costa Leite. Folheto 1977
Lá tem um rio chamado
o banho da mocidade
onde um velho de cem anos
tomando banho a vontade
quando sai fora parece
ter vinte anos de idade.

É um lugar magnifico
onde eu passei muitos dias
bem satisfeito e gozando
prazer, saúde, alegrias
todo esse tempo ocupei-me
em recitar poesias.

O poeta usa uma estratégia para vender o folheto dizendo que quem quiser saber como encontrar o país encantado tem que comprar o cordel.
Eu comprei o folheto na esperança de encontrar o caminho certo que me levasse a esse lugar bom de se morar mas, nem em sonho encontrei.
Nas últimas estrofes o poeta assim diz:
Lá existe tudo quanto é de beleza
tudo quanto é bom, belo e bonito,
parece um lugar santo e bendito
ou um jardim da divina Natureza
imita muito bem pela grandeza
a terra da antiga promissão
para onde Moisés e Arão
conduziram o povo a Israel
onde dizem que corriam leite e mel
e caía manjar do céu no chão

Tudo lá é festa e harmonia
amor, paz, benquerer, felicidade
descanso, sossego e amizade
prazer, tranquilidade e alegria;
na véspera de eu sair naquele dia
um discurso poético lá eu fiz,
me deram a mandado de um juiz
um anel de brilhante e de “rubim”
no qual um letreiro diz assim:
- É feliz quem visita este País.

Vou terminar avisando
a qualquer um amiguinho
que quiser ir para lá
posso ensinar o caminho,
porém só ensino a quem
me comprar um folhetinho.

Nada melhor do que contar essa história fantástica neste momento de isolamento social para enfrentar mais um período de pandemia que desde a Idade Média afeta e mata milhares de pessoas em quase todas as partes do mundo. Lamentavelmente ainda não encontrei esse lugar encantado tão bom de viver e aqui no mundo real tenho que esperar a pandemia passar. O país encantado de São Saruê deve estar em algum lugar do semiárido nordestino e vou continuar procurando até um dia encontrar. E se Deus é brasileiro, como algumas pessoas dizem, acho que Ele viveu em São Saruê um lugar sem pecado, sem maldade, sem inveja, sem isolamento social, sem Covid-19. Quem quiser conhecer melhor esse país encantado recomendo que compre, leia com atenção o cordel de Manoel Camilo dos Santos Viagem a São Saruê, se tiver mais sorte que eu e chagar lá, venha me buscar.       


Referências
BARRETO, Luiz Antonio. Cristãos e mouros na cultura brasileira. Euro-América. Rio de Janeiro: Comissão Nacinal de Folclore/IBEC/UNESCO: Tempo Brasileiro, 1996.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980.
BENJAMIN, Roberto. A presença da temática francesa na literatura de cordel brasileira – nota prévia. Comunicação ao Congresso Internacional de Literatura de Cordel, 1. Governo da Paraíba/Universidade de Poitiers, João Pessoa, 20 a 23 de setembro de 2005.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SANTOS, Manoel Camilo. Viagem a São Saruê. [Folheto de cordel]. João Pessoa: MEC/PRONASEC RURAL – SEC/PB/UFPB/FUANPE, 1981.
SANTOS, Manoel Camilo. Viagem a São Saruê. [Folheto de cordel]. Olinda: Ed. Casa das crianças de Olinda, 1977.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Cocanha: o encantamento medieval e contemporâneo no cordel. Disponível em: <https://docplayer.com.br/14178354-Cocanha-o-encantamento-medieval-e-contemporaneo-no-cordel.html>