quinta-feira, 27 de junho de 2024

Festa da Bugiada e Mouriscada: o São João de Sobrado, conselho de Valongo no Norte de Portugal


 Osvaldo Meira Trigueiro

Professor Associado aposentado da UFPB/CCTA.
Jornalista Profissional.
Membro: Intercom, Rede Folkcom,
Comissão Nacional de Folclore,
Comissão Paraibana de Folclore/Brasil;
Centro de Investigação Professor Doutor
Joaquim Veríssimo Serrão/Portugal.
Pesquisador independente

Fotos do acervo pessoal – créditos: Osvaldo e Rosinha Trigueiro


Introdução

 

Abordo aqui alguns aspectos da extraordinária festa de São João no dia 24 de junho na freguesia de Sobrado, conselho de Valongo localizada na área metropolitana do Porto, no Norte de Portugal. No dia da festa a comunidade de Sobrado, da vizinhança e turistas assistem as batalhas festivas entre os Bugios (cristãos) e os Mourisqueiros (mouros). São essas especificidades da festa em Sobrado, uma batalha entre cristãos e mouros, que a diferenciam das demais festividades aos santos populares no mês de junho, Santo Antônio (13), São João (24) e São Pedro (29), em Portugal. Em Sobrado as batalhas festivas entre cristãos e mouros pela posse da imagem milagrosa de São João é um evento único em toda região. Algumas festas religiosas do catolicismo popular foram deslocando-se das grandes procissões de Corpus Christi, reinventando-se, porém, sem perder os seus significados representados nas seculares batalhas santas entre o bem e o mal, o azul e o encarnado. Melhor dizendo, entre cristãos e mouros, batalhas essas presentes nas diferentes encenações dos espetáculos populares, com suas origens na Idade Média e que chegaram à Idade da Mídia pelos processos de transformação que passam na atualidade as danças, os folguedos, as narrativas orais, a literatura popular e tantas outras manifestações culturais tradicionais, que continuam impregnadas de residualidades medievais (PONTES, MARTINS, 2015). São narrativas que contam os feitos heroicos do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França na luta contra os infiéis e a expansão do cristianismo na antiga Europa (BARRETO, 1996).

A possível origem da festa da Bugiada e Mourisqueiros

A filha do Reimoeiro, o rei mouro, estava muito doente desenganada pelos médicos da corte e como havia conhecimento que a filha do rei cristão, o Velho da Bugiada, tinha sido curada pela milagrosa imagem de São João, o Reimoeiro convida o Velho da Bugiada para um jantar e pedir-lhe a imagem de São João por empréstimo na tentativa de curar a sua filha. Mas, o Velho da Bugiada, desconfiado, não aceita o convite com medo de ser uma armadilha do Reimoeiro para ficar de posse da imagem milagrosa. O Reimoeiro desesperado declara guerra ao Velho da Bugiada e tem início uma longa batalha pela posse da imagem milagrosa de São João, cujo confronto festivo acontece no dia 24 junho.

O mundo pelo avesso ou da desordem social

Sobrado, no dia de São João, torna-se um grande terreno de batalhas de enfrentamento dos dois grupos festivos “antagônicos” dos Bugios e Mourisqueiros que percorrem as ruas da freguesia com suas músicas e danças típicas, mas o confronto entre os grupos só acontece já no final da tarde na batalha da tomada do castelo dos Mourisqueiros pelos Bugios. Essa batalha é um acontecimento constituído de campo simbólico polarizado entre cristãos e mouros onde as relações de força são estabelecidas festivamente por diversos protagonistas que participam das celebrações em homenagem a São João. Entre os protagonistas dos festejos populares destacam-se o Reimoeiro dos Mourisqueiros, o Velho dos Bugios, o Cego, o Sapateiro e sua mulher, que é um homem vestidos de trajes femininos, o Cobrador dos Direitos, o Semeador, a Serpa, o Advogado e o desfile da Crítica que será motivo para uma análise em outro estudo. Bugios (cristãos) e Mourisqueiros (mouros) são um exemplo extraordinário da sobrevivência de bens culturais medievais na festa de São João em Sobrado, onde quase tudo acontece ao contrário, da inversão dos valores dos papéis sociais, que são características das celebrações religiosas e das festas carnavalescas na Idade Média. Na Bugiada e Mouriscada observamos vários eventos que estão vinculados a festas cujas origens são tão antigas quanto a expansão do cristianismo na Península Ibérica. Portanto, no São João de Sobrado o mundo fica pelo avesso ou quase tudo acontece ao contrário e tem suas origens nas tradições milenares do Velho Mundo, onde nos campos de disputas entre o sagrado e o profano prevalece o espírito carnavalesco e sempre a vitória dos cristãos sobre os mouros (AMORIM, BENJAMIN, 2002).

O Grupo dos Bugios 

Representa os cristãos, tem grande número de participantes sem restrições de idade e de gênero, são mascarados e suas indumentárias são multicoloridas com predominâncias das cores vermelha, azul, verde e laranja. Desacatam-se pelo uso de capa, chapéu de abas largas ornamentados com fitas coloridas, na altura da cintura uma faixa larga de cor vermelha, os calçados são diversificados, as meias são longas até a altura dos joelhos com listas de várias cores e guizos pendurados. O grupo sai em cortejo pelas ruas de Sobrado em duas longas filas com cerca de 800 brincantes comandados pelo Velho da Bugiada, que é o seu Rei, fazendo muito barulho para divertir o público com gritos, saltos e algazarras. O Velho vai na frente, entre as duas filas, usa indumentária diferente dos demais brincantes estimulando o grupo com palhaçadas e transgressões. Usam luvas brancas, nas mãos levam castanholas, rosas, bichos de pelúcia, bonecas, buzinas, grandes colheres e garfos de madeira, alho porro ou martelinho, chifre de boi, rabo de raposa e de coelho, e tantos outros objetos conforme a criatividade de cada brincante. O grupo é acompanhado por uma orquestra de cordas, violões e violinos, com forte marcação rítmica das castanholas, dos guizos e sons dos brincantes imitando animais (PINTO,1983 e LOPES, 2008). O grupo que representa os cristãos é transgressor da ordem social, com atitudes obscenas e “diabólicas” provocando risos e alegria na multidão das ruas de Sobrado quando passam aos gritos e pulos. A Bugiada, assim como a Mouriscada, seria um ressignificado das antigas encenações do Mistério da Paixão ou do Mistério de São João, onde era permitido que as pessoas mascaradas e vestidas de diabo corressem pelas ruas das aldeias em total desgoverno nos dias que antecediam as festas de São João ou as festas de Verão no hemisfério norte.

 

Injúrias e obscenidades faziam parte do seu repertório: agiam e falavam contrariamente às concepções oficiais cristãs, como aliás o exigia o papel. Faziam em cena um barulho e uma confusão extraordinária, sobretudo se se tratava da “grande diabrura”. Daí a expressão “fazer o diabo a quatro” Esclareçamos de passagem que a maior parte das imprecações e grosserias onde figura a palavra “diabo”, deve a sua aparição ou evolução aos mistérios cênicos (BAKHTIN, 1993, p. 232).

Portanto, Bugios (cristãos) é o grupo com maior número de brincantes que representam os desordeiros, os transgressores da ordem social, provocadores e desobedientes das regras comportamentais do que seria um “bom cristão”. Os brincantes do grupo dos Bugios não participam diretamente da missa solene e nem da procissão em honra a São João, são os Mourisqueiros que participam da procissão e conduzem a desejada imagem milagrosa de São João. Ou seja, durante quase todo o dia da festa os Bugios são os transgressores e fazem “o diabo a quatro” pelas ruas da vila de Sobrado. É mais uma demonstração que na festa da Bugiada e Mouriscada quase tudo acontece ao contrário ou o mundo pelo avesso.

O Grupo dos Mourisqueiros

Representa os mouros infiéis, é constituído de soldados jovens solteiros, cuja tradição devem gozar de boa saúde para enfrentar os mouros no campo de batalha, não usam máscaras, têm uma formação de característica militar com duas filas em número par e entre as filas fica o Reimoeiro comandante do grupo que usa trajes diferenciados dos soldados. Os dois figurantes – soldados – que ficam na frente da fila são denominados de Guias, os que ficam atrás das filas são os Rabos e os do meio recebem a denominação de Meios. É um grupo disciplinado que obedece às ordens do comandante, desfila ordeiramente pelas principais ruas de Sobrado com as espadas em punho como se estivesse em posição de defesa. Suas indumentárias, coreografias e ritmos assemelham-se à formação dos pelotões militares. O grupo participa diretamente das celebrações religiosas dentro e fora da igreja, na missa solene e na procissão conduzindo o andor da imagem de São João. Durante toda a festa é acompanhado apenas por um músico, o caixeiro, que marca o ritmo tocando como se fosse uma marcha militar. Uma das características do grupo Mourisqueiros é ser constituído exclusivamente por homens jovens, não há participação de mulheres nem crianças. Essa tradição seria uma ressignificação dos antigos sistemas das guildas corporações dos mestres dos ofícios – sociedades secretas com o objetivo de viajar por diferentes localidades da França, o denominado – tour de France – para sistematização de políticas em defesa da classe trabalhadora na organização de greves e “protótipos de sindicatos”. Ou seja, “Os oficiais franceses, por exemplo, tinham os seus “compagnonnages” ou “devoirs”, cujos membros ativos consistiam principalmente de solteiros entre 18 e 26 anos de idade”. Essas organizações espalharam-se na Europa divulgando as suas ideias através de rituais secretos nos trabalhos ou nas festas dos seus padroeiros e padroeiras (BURKE, 1989, p. 66). Os Mourisqueiros, não participam das encenações obscenas e transgressões da ordem social, têm como objetivo executar manobras estratégicas militares ofensivas na tentativa de roubar a imagem milagrosa de São João em poder dos Bugios e prender o seu rei, Velho da Bugiada, no castelo.

A Cobrança dos Direitos

A Cobrança dos Direitos é uma das paródias burlescas da festa, que ocorre no início da tarde do dia 24 de junho, no intervalo das batalhas entre os cristãos e mouros em que um dos brincantes da Bugiada, escoltado por outros bugios, montado ao contrário no burro passeia no meio da multidão representando, de forma satírica, um cobrador de direitos ou de impostos. Acompanhado por Bugios e outras pessoas, numa verdadeira desordem, o cobrador vai aos estabelecimentos comerciais como as barracas, tascas e restaurantes que vendem comidas e bebidas nas ruas de Sobrado no perímetro da festa, para recolher os impostos “devidos”. O cobrador traz na mão um grande livro velho com estampas de mulheres nuas e uma caneta para anotar os pagamentos recebidos e usa como tinteiro o ânus do burro para molhar o bico da caneta. É uma cobrança simbólica de arrecadação de comidas e bebidas feita com muita algazarra e desordem para animar a festa dos brincantes.

 

Geralmente só vão às tendas de doces, de comidas, e sobretudo de bebidas. Se o tasqueiro arma em mal-humorado e insolente, os Bugios “pintam o diabo”, viram tudo de pernas para o ar, fazendo grande “chinfrim”. Se lhes dão vinho, fazem que bebem (e muitos bebem mesmo), derramando-o pelo peito abaixo; se lhes dão cerveja, “agitam-na bem antes de usar” espalhando a espuma pela cabeça dos circunstantes (PINTO, 1983, p. 19).

 

A cobrança dos direitos ou impostos é uma manifestação do espetáculo popular que vamos encontrar em diferentes festas religiosas e profanas como uma das representações simbólicas de críticas aos impostos abusivamente cobrados pelos poderes públicos, prática essa que vem desde a Idade Média aos dias atuais e sempre contestada pela maioria da população. E como o mundo fica pelo avesso em Sobrado no período da festa, o espetáculo Cobrança dos Direitos é mais uma das encenações satíricas, cômicas, burlesca e que faz a alegria da multidão aglomerada no território do Largo do Passal, que corre de um lado para o outro atrás do cobrador de impostos montado ao contrário no burro segurando o rapo como fosse o cabresto.

A Lavra da Praça Invertida: semear, gradar e lavrar

Quando finaliza o entremeio da Cobrança dos Direitos, mais uma encenação do teatro de rua, vem em seguida a da Sementeira Invertida apresentada por personagens mascarados, com roupas velhas e surradas imitando o pobre que trabalha no campo. Os trabalhadores rurais figurantes vão jogando as sementes para o alto num movimento de semeadura invertida como se estivessem plantando no espaço e não na terra. Os brincantes da Bugiada vão abrindo passagem no meio da multidão para que a encenação do espetáculo da entrada do arado cenográfico, puxado por burros dando voltas rápidas bem próximo dos espetadores que correm, pulam, gritam para não serem atingidos, mas ao mesmo tempo vibram, dão risadas de demonstração de alegria e satisfação de participar da encenação do mundo pelo avesso. A Sementeira Invertida é uma encenação no entorno do Largo do Passal que representa de forma satírica as origens das antigas festas cíclicas agrícolas do início de verão no hemisfério norte.

A Dança do Cego ou Sapateirada

É um dos momentos mais esperados da festa que acontece nas mediações do adro da igreja na presença de um grande público. A montagem do cenário é realizada por alguns brincantes da Bugiada que na rua em frente à porta principal da igreja e da casa paroquial constroem um charco com lama e capim. É um espetáculo cujo enredo conta a história de um cego e seu guia, de um sapateiro e sua mulher (personagem masculina vestida de mulher), com enredo e tramas onde prevalecem  o amor, a traição,  o ódio, o risível, o cômico, o grotesco e o obsceno que são interpretações tradicionais nas construções dramáticas do gênero teatral popular de rua encenado nos adros das igrejas e praças públicas no período das antigas festas de Corpus-Christi, de São João Batista, de santos e santas padroeiros e padroeiras de algum lugar e nas festas de carnavalização na Idade Média. A dança do cego e do sapateiro é mais um exemplo da ressignificação dos espetáculos encenados nas antigas festas de São João na passagem do solstício de verão com enredos que continuam conquistando importantes públicos nas festas tradicionais populares no contexto da sociedade midiatizada pela globalização cultural com as fortes marcas culturais da Idade Média na Idade da Mídia.

 

Essa festa adotava uma forma carnavalesca em algumas comunidades que tinham São João como santo padroeiro. Era o caso, por exemplo, de Chaumont, na diocese de Langres, onde as semanas que antecediam a festa eram dedicadas ao “desgoverno”, organizado, ou antes, desorganizado por demônios. Os demônios, um tanto parecidos com os “caldeus” russos, atiravam fogos de artifício na multidão, corriam pela cidade nas noites de domingo, aterrorizavam o campo e cobravam taxas no mercado (BURKE, ob. cit., p. 218-219).

 

No Largo do Passal, local onde é encenada a dança do cego, concentra-se uma multidão para assistir as travessuras e algazarras de alguns brincantes da Bugiada que atuam como coadjuvantes do espetáculo protagonizado pelo cego e seu guia, pelo sapateiro e sua mulher (homem vestido de mulher). Nas festas da piedade popular, na Idade Média, as corporações de ofícios e seus mestres tinham um importante papel na organização, na realização das celebrações religiosas e profanas, inclusive com destaques nas procissões conforme a posição hierárquica de cada um na comunidade. As corporações tinham os seus santos padroeiros, rituais específicos transmitidos de geração em geração para manter as tradições do ofício e, quanto mais especializado o trabalho, o mestre e os seus aprendizes tinham posições privilegiadas no seu grupo social. O sapateiro era um profissional que tinha uma vida social respeitada na comunidade, com um nível financeiro e cultural acima da média, geralmente sabia ler e escrever e por esses motivos admirado pelas moças mais cobiçadas da sociedade. Na Idade Média as narrativas sobre os feitos dos sapateiros como grandes mestres eram cantadas e contadas nas redes de comunicação orais – mnemônicas (ZUMTHOR, 1993) – representadas nas peças teatrais nas ruas, nas praças e o seu personagem quase sempre era um dos heróis das histórias.

 

Os sapateiros aparecem como heróis também na Europa continental; na famosa canção folclórica francesa Le petit cordonnier, é o sapateiro que fica com a moça tão disputada. Sobrevivem canções e estórias germânicas em louvor à sapataria; da mesma forma os skomakarvisa escandinavos, isto é, canções de trabalho dos sapateiros, e a Pomerânia polonesa registra o szewc, dança do sapateiro (BURKE, ob. cit., p.65).

 

Os sapateiros se envolviam na política, com opiniões religiosas, às vezes contrárias a pregações oficiais da igreja e por esses motivos alguns sapateiros eram perseguidos ou pagavam até com a própria vida por defender seus pontos de vista e suas profecias, como o caso do famoso sapateiro e profeta português de Trancoso, Gonçalo Anes Bandarra que viveu no século XVI (BURKE, ob. cit., p 65.). Ao contrário do sapateiro os cegos eram andarilhos, pedintes, vistos como artistas vagabundos, como malandros e que sempre davam um jeitinho para conseguir seus objetivos. Cantores e improvisadores de versos que se apresentavam nas feiras, nas festas e nas portas das igrejas para ganhar um pouco de dinheiro, geralmente analfabetos, não tinham grande prestígio na sociedade, quase sempre eram pobres apesar de serem grandes artistas e com a sua arte agradarem um determinado público. Muitos desses “artistas-vagabundos” parecem ter sido cegos. “Na Espanha, o nome usual para um cantor de rua costumava ser cego(BURKE, ob. cit,. p.123). Nos contos, nos romances e na literatura de cordel, que vem desde o período medieval até os nossos dias, é possível encontrar diferentes narrativas, intermediadas por esses ativistas culturais mediadores nas redes folkcomunicacionais importantes acontecimentos de época contados por cegos nas feiras, nas festas e portas de igreja no Nordeste brasileiro (TRIGUEIRO, 2008, 2019).  O pesquisador brasileiro Silva (1977), num importante estudo dos cantos e contos populares faz um percurso profundo sobre o cego como narrador de histórias, cujas origens estão diretamente vinculadas aos acontecimentos medievais e que chegaram ao Nordeste brasileiro atualizados por diferentes sistemas de comunicação transmitidas de geração em geração. A dança do cego e do sapateiro é mais uma encenação ressignificada das histórias das cooperações de ofícios representadas nas antigas procissões, nas festas populares e que continuam presentes no São João em Sobrado. A dança do cego e do sapateiro é um extraordinário espetáculo popular que merece ser visto no dia de São João, 24 de junho, em Sobrado. A dança do cego e do sapateiro encenada na fronteira dos territórios sagrado (igreja) e do profano (a rua) é uma representação teatral notável – performática – que através dos seus personagens narram uma história dramática de amor, traição, cômica, satírica, obscena e sobretudo risível.

Algumas questões para reflexão

Nas minhas observações exploratórias participativas no período das festas, em 2013, 2015 e 2019, ficou evidenciado que a  Bugiada e Mouriscada é constituída por complexas redes de agentes intermediários da folkcomunicação, que operam os diferentes canais de comunicação como mediadores ativistas culturais e que negociam os interesses da comissão organizadora  da festa tradicional popular com os interesses das demandas de  consumo dos bens culturais da festa  no contexto da sociedade midiatizada (BERTRÃO, 1980, TRIGUEIRO, 2008). Mesmo com a globalização cultural, cada vez mais o interesse dos meios de comunicação social, do turismo e de tantos outros agentes externos, a festa religiosa e profana de Sobrado no dia de São João continua com suas marcas culturais tradicionais, o que faz da Bugiada e Mouriscada uma festa diferenciada e única das tantas outras celebrações aos santos populares em Portugal no mês de junho. A Bugiada e Mouriscada é uma festa com grande participação popular com alegria e diversão, mas carregada de insatisfações, de críticas aos poderes públicos e privados publicizadas pelo protagonismo dos agentes ativistas midiáticos culturais da folkcomunicação, que organizam estratégias de encenação das danças e do teatro popular de rua crítico, risível, cômico, burlesco, que conta à sua maneia as histórias do passado entre cristãos e mouros e as histórias do presente entre o povo e as elites. Nas batalhas entre Bugios e Mourisqueiros, nas paródias da Dança do Cego ou Sapateirada, da Cobrança dos Direitos, da Lavra da Praça, no Cortejo da Crítica, na batalha final da prisão e libertação do Velho da Bugiada, o risível, o cômico e o burlesco têm significação social (BERGSON, 1983). Portando, é incorreto olhar a festa de São João ou da Bugiada e Mouriscada como um momento simplesmente de fuga da vida cotidiana e alienada dos problemas socioculturais e econômicos de Valongo ou mesmo da freguesia de Sobrado. Os brincantes da festa estrategicamente aproveitam-se do período dessa celebração para narrar o enfrentamento do bem contra o mal, dos cristãos e mouros, numa batalha que todos já conhecem o seu final há centenas de anos, mas o povo fica até o encerramento da festa para ver a vitória dos cristãos contra os mouros infiéis. Cada festa tem os seus percursos próprios e em Sobrado não é diferente, a batalha entre cristãos e mouros narrada no decorrer da festa tem as suas singularidades locais que a diferencia da encenação do Auto do Rei David durante a festa de São João em Braga, também no dia 24 de junho (observação in loco) e do Auto da Floripes, em Viana do Castelo, encenado na festa de Nossa Senhora das Neves no dia 5 de agosto (ABREU, 2001). As batalhas entre cristãos e mouros aqui no Brasil representadas na Chegança, na Nau Catarineta, na Cavalhada, na literatura de cordel, nos cantos, nos contos e romances populares e em diferentes manifestações das culturas tradicionais ao longo do tempo foram incorporando bens culturais tropicalizados, primeiro pelos povos originais, depois pelos africanos, depois  por tantos outros povos que chegaram ao Brasil já depois do período colonial e, atualmente, com os avanços dos meios de comunicação e do turismo para atender as demandas da sociedade midiatizada. As batalhas nas festas entre cristãos e mouros, entre bem (azul) e o mal (encarnado), onde esse último sempre é derrotado, são narrativas do ciclo carolíngio, das canções de gestas que contam os feitos dos reis católicos contra os infiéis mouros, seja em Portugal ou no Brasil, sempre têm um final feliz e todos terminam em paz. A festa de São João, como tantas outras que são celebradas, não deixa de ser uma das representações ressignificadas das antigas rupturas dos valores sociais da vida cotidiana, da bagunça, da desordem e da transgressão consentidas pela igreja e autoridades, no início do verão na Europa. O sagrado e o profano nas festas tradicionais populares não são mais campos de estudos só do interesse dos folcloristas, etnólogos, sociólogos, historiadores e antropólogos, nos últimos anos tornou-se objeto de estudos dos comunicólogos e turismólogos, porque são festas que vêm, cada vez mais, atendendo as demandas dos negócios do turismo e das organizações da comunicação social. A Bugiada e Mouriscada, é mais um exemplo de uma festa popular em processo de ressignificação com o objetivo de atender as demandas da sociedade de consumo inserida no contexto da globalização cultural, mas não se afasta das suas marcas estruturantes vinculadas às suas tradições de celebração do dia de São João. Esses agentes internos, Bugios e Mourisqueiros, são os responsáveis pela manutenção das suas tradições, que operam como ativistas culturais e negociadores dos processos de transformação da festa com os agentes intermediários representantes das instituições e organizações da exterioridade, porque são eles os detentores do patrimônio cultural da grande batalha entre cristãos e mouros na freguesia de Sobrado, conselho de Valongo no Norte de Portugal.


Foto: 01 -   No dia 24 de junho o povo vai ás ruas de Sobrado festejar o São João.



Fotos: 02 e 03 – Concentração na Casa do Bugio e do Mourisqueiro para assistir a saída dos grupos em cortejo ao centro de Sobrado.



Fotos: 04, 05 e 06 – Imagem milagrosa de São João.  Os ex-votos antropomórficos como testemunhos de graças alcançadas com a intercessão de São João. Procissão em honra a São João.





Fotos: 07, 08, 09 e 10 – Grupo dos Bugios – cristãos - desfilando nas ruas de Sobrado e encenando as danças sob comando do Velho da Bugiada em desordem e transgressões.





Fotos: 11, 12, 13 e 14 - Grupo dos Mourisqueiros – mouros – desfila em ritmo de marcha militar nas ruas de Sobrado comandado pelo Reimoeiro. 


Fotos: 15 e 16 – A encenação da Cobrança do Direito ou de Imposto. 




Fotos: 17, 18 e 19 – A encenação invertida da Lavra da Praça: semear, gradar e lavrar. 



Fotos:  20 e 21 – O Cego e o Sapateiro





Fotos: 22, 23, 24 e 25 – Igreja Matriz de Sobrado dedicada a Santo André localizada no Largo do Passal onde é encenada a dança do Cego ou Sapateirada.  


Fotos: 26 – Cavaleiro leva mensagem do castelo cristão para o castelo mouro no processo de negociação para libertar o Velho dos Bugios. A mensagem é simbolicamente uma folha de plátano espetada na sua espada. 




Fotos: 27 e 28 – Batalha final entre cristãos e mouros, prisão e libertação do Velho dos Bugios - encerramento da festa.   


Referências

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AMORIM, Maria Alice; BENJAMIN, Roberto. Carnaval: cortejos e improvisos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002.
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BARRETO, Luiz Antônio. Cristãos e mouros na cultura brasileira. Eu-América: uma realidade comum? Rio de Janeiro: Comissão Nacional de Folclore/IBEC/UNESCO/ Tempo Brasileiro, 1996.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980.
BENJAMIN, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Editora Universitária, 2000.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LOPES, Aurélio. A Festa dos Bugios do Sobrado. Instituto de Estudos de Literatura Tradicional/Fundação para Ciência e Tecnologia/IRELT. Lisboa, 2008.
PINTO, Manuel. Bugios e Mourisqueiros. Edição da Associação de Defesa do Patrimônio e Cultura do concelho de Valongo/Portugal, 1983.
PONTES, Roberto, MARTINS, Elizabeth Dias. Residualidades ao alcance de todos. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editores, 2015.
SILVA, Jackson Lima da. O folclore em Sergipe I: romanceiro. Rio de Janeiro: Cátedra, Brasília. INL, 1977.
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TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Folkcomunicação e ativismo midiático. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
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ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.