(História pra contar )
Parque Religioso Cruz da Menina |
Perto a
cidade de Patos
existe
uma romaria
chamada
Cruz da Menina
que
vem gente todo dia
conhecer,
pagar promessa
de fora e da freguesia.
(Antônio
Américo de Medeiros, poeta popular)
Narro
agora uma breve história da minha ligação religiosa e especialmente como
pesquisador da Rede Folkcom – Rede de Estudos e Pesquisa em
Folkcomunicação.
A
história da Cruz da Menina sempre fez parte do meu imaginário religioso e
cultural desde a infância aos dias atuais. Eram frequentes, na casa dos meus
pais e da minha avó materna, as narrativas das histórias de curas das mais
diferentes doenças, dos mais variados desejos alcançados por parentes,
conhecidos e até de romeiros de fora da freguesia. São incontáveis os
fatos narrados através dos ex-votos depositados nas duas salas dos milagres na
Cruz da Menina.
Visitei
inúmeras vezes o Parque Religioso da Cruz da Menina, que está localizado no
município de Patos, cidade onde nasci, ás margens da BR 230 e cerca de 300 km de João Pessoa, a
capital do Estado da Paraíba/Brasil, por acreditar no poder de cura da
Francisca, da fama de milagreira, mas também por ser um lugar agradável para o
descanso na caminhada da casa dos meus pais da Rua Pedro Firmino, no centro de
Patos, até ao sítio da minha família que ficava próximo da fazenda Trapiá e da
capelinha com a imagem de Francisca a menina milagreira. Em Campo Alegre vivi
períodos felizes da infância e parte da minha adolescência, onde ouvi relatos
dos romeiros que por lá passavam rumo à Cruz da Menina, seguindo a linha do
trem vindo de vários outros sítios da redondeza. E ao longo dos anos fui
construindo uma memória sociocultural deste
lugar considerado sagrado pela devoção do catolicismo popular.
A
minha ligação com a Cruz da Menina continua forte por dois aspectos, o primeiro
por ser um lugar místico e cheio de boas energias para quem acredita e eu
continuo acreditando nos milagres da Francisca, o segundo por ser um lugar de
memórias, de testemunhos deixados pelos peregrinos nas salas dos milagres que
através dos ex-votos narram diferentes acontecimentos e anunciam as graças
alcançadas.
Portanto,
neste artigo abordo a importância dos ex-votos como expressão de fé depositados
nos lugares de agradecimentos por graças alcançadas e principalmente como
narrativa dos acontecimentos que levaram os romeiros a pagarem promessas aos
santos e santas de suas devoções.
Ex-votos Cruz da Menina Foto do acervo pessoal |
Sem
dúvida, tudo começa com essa forte ligação que tenho com a Cruz da Menina e
especialmente com a sala dos milagres, a exemplo do que afirma o poeta popular
Antônio Américo: O quartinho dos milagres/é todo cheio de curas/mostrando
grandes doenças/de diversas criaturas/dos aleijados que sofriam/vão deixar lá
as molduras.
A
Cruz da Menina: o início dos estudos dos ex-votos
Pq Religioso Cruz da Menina-Patos/PB Foto do acervo pessoal |
Ex-votos Foto do acervo pessoal |
O
professor pernambucano Luiz Beltrão explica e classifica a existência
de outras categorias de comunicação jornalística além das vigentes na época, jornalismo
informativo, jornalismo opinativo, como manifestações de comunicação de caráter
popular: informação oral, informação escrita e informação opinativa
difundidas por meios de comunicação do próprio povo e que têm uma vinculação
direta entre o folclore e a comunicação popular e que mais adiante viria a se chamar Folkcomunicação. É daí que vem o conceito
desse novo modelo de comunicação assim definido: Folkcomunicação é, assim, o
processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, ideias e
atitudes da massa, através de agentes de opiniões e meios ligados direta ou
indiretamente ao folclore (BELTRÃO, 2002, p. 79). O artigo de 1965 sobre
ex-voto foi o ponto de partida para a formulação da teoria da folkcomunicação
desenvolvida por Luiz Beltrão e base fundamental para os meus estudos.
Cruzeiro do Pq Religioso C. da Menina Foto do acervo pessoal |
Antiga Sala dos Milagres-Cruz da Menina Foto do acervo pessoal |
Ex-votos do acervo pessoal |
Em
1977, num final de tarde chegando lá para mais uma visita, já como Diretor da
Divisão de Folclore da Coordenação de Extensão-UFPB/PRAC/COEX, e com a intenção
de recolher algumas peças para o projeto de estudos sobre os ex-votos que
estávamos desenvolvendo, precisei de um certo tempo para enfrentar o receio ou
mesmo o respeito que tinha em recolher as peças deixadas pelos devotos na Cruz
da Menina
Ex-votos-Cruz da Menina Foto do acervo pessoal |
Ex-voto-Cruz da Menina Do acervo pessoal |
Portanto,
a promessa estava cumprida e o agradecimento à menina Francisca estava feito, o
objeto tinha sido deixado para trás e dona Odília necessitava de novos espaços
na sala das promessas e assim era feito e assim foi organizado um acervo
importante como referência para os diferentes estudos e pesquisas.
Ex-votos na Cruz da Menina Foto do acervo pessoal |
Não
foi uma tarefa fácil incluir na academia os estudos e as pesquisas do folclore
e da cultura popular em meados dos anos 70 do século passado, estávamos entre a
cruz e a espada, de um lado os folcloristas tradicionais que não
aceitavam os processos de atualização – as inovações culturais – das
manifestações folclóricas e populares com os avanços das novas tecnologias e
dos meios de comunicação social, principalmente da televisão que avançava por
quase todo território nacional e com forte influência nos hábitos e costumes
dos brasileiros, inclusive nas manifestações culturais tradicionais. Por outro
lado, determinados segmentos da academia achavam inadequado os estudos e as
pesquisas do folclore e da cultura popular no âmbito das universidades. Mas um
grupo de professores, de pesquisadores, de técnicos e de servidores da UFPB
seguiu em frente ultrapassando grandes obstáculos e em 1978 fundaram o NUPPO –Núcleo
de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular que atualmente é uma das
referências na UFPB nos estudos e nas pesquisas do folclore e da cultura
popular (https://www.ufpb.br/nuppo).
Sala dos Milagres-Cruz da Menina Foto do acervo pessoal |
As
festas religiosas sagradas e profanas, as romarias e os lugares de pagamentos
de promessas estão sempre presentes nas minhas pesquisas no campo da
folkcomunicação e como não poderia deixar de ser os ex-votos como fonte de
informação dos anúncios das promessas. Na atualidade os estudo e as pesquisas
dos ex-votos na folkcomunicação ampliaram os campos de observações e análises
com o objetivo de compreender essa zona hibrida entre as manifestações
religiosas populares do pagamento de promessas com os ex-votos tradicionais e o
pagamento de promessas com os ex-votos através de ferramentas midiáticas. Portanto,
os ex-votos não são apenas representações simbólicas nas esculturas populares
de madeira e de barro, como era antigamente a predominância nas salas das promessas,
na atualidade as peças industrializadas de parafina, as fotos das câmeras
digitais, CDs, DVDs, Pen Drives e velas eletrônicas estão espalhados pelas
salas de promessas e não seria diferente na Cruz da Menina.
Com a
globalização do mundo contemporâneo, ao invés da tão propagada homogeneização
cultural, do desaparecimento das culturas locais, o que estamos vendo é uma
nova ressignificação das manifestações locais e consequentemente do nosso
folclore, das culturas populares. Um exemplo dessas novas clivagens é o
aparecimento das diversidades folkcomunicacionais, da milenar manifestação
religiosa dos ex-votos em santuários, capelas, grutas, cemitérios, cruzes de
beiras de estadas, cruzeiros nos altos dos morros e em tantos outros lugares de
romarias que se espalham em áreas urbanas e rurais de todas as regiões do país.
Ex-votos, fitas Foto do acervo pessoal |
Em
dezembro de 2019 quando voltei ao Parque Cruz da Menina constatei que essa zona
híbrida dos ex-votos tradicionais e os ex-votos midiáticos, os fabricados em
série, estão juntos depositados nas duas salas das promessas, assim como as
fitas estilo Nosso Senhor do Bom Fim, uma tradição marcante do povo baiano,
estão também penduradas em diferentes lugares na Cruz da Menina.
Na sala dos milagres a lógica
semântica é construída pelos peregrinos, é um espaço quase sempre anexo ao
santuário onde o pagador de promessa tem toda a liberdade de expressão. É o
lugar onde são depositadas as promessas, os milagres representativos dos
desejos dos devotos em relação ao santo ou santa de sua devoção. São práticas
religiosas, que em determinadas ocasiões, transcendem as classes sociais onde
encontramos agradecimentos de poderosos e ricos ao lado das graças recebidas
também pelos marginalizados socialmente.
Portanto, ainda alimento a
esperança de que o Parque Religioso Cruz da Menina se fortaleça como mais um importante destino
de romaria e o museu dos ex-votos como um centro de referência documental das
histórias narradas através dos diferentes ex-votos ali deixados.
Este artigo foi originalmente publicado na Revista nº 8 do Instituto Histórico e Geográfico de Patos, edição de dezembro de 2020.
Referências
BENJAMIN, Roberto. devoções populares não-canônicas na América Latina: uma proposta de
pesquisa. In: VI Congreso Latinoamericano de Ciencias de la Comunicación – ALAIC
2002. Santa
Cruz de la Sierra, Bolivia, 2002.
BELTRÃO, Luiz. O ex-voto como veículo jornalístico.
In: Comunicações e Problemas. Recife:
ICINFORM/Universidade Católica de Pernambuco, n. 1, 1965. 72 p.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo
dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressões de ideia.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
MARTINS, J; TRIGUEIRO, O. O ex-voto: documento de fé no Santuário de Nossa Senhora da Penha. Cláudio A. de Oliveira, Clarisse Prêtre (organizadores). Se eu quiser falar com Deus: histórias e lugares dos ex-votos. Curitiba, PR: CRV, 2018.
MEDEIROS, Antônio Américo. Cruz da Menina: história
completa.
TIGUEIRO, Osvaldo Meira. O ex-voto como veículo de
comunicação popular. In:
Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e
metodológicos/Cristina Shmidt (organizadora). São Paulo: Ductor, 2006.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. A cata das promessas: o
ex-voto como veículo folkcomunicacional. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Patos. Patos – PB, v. 8l, n.8, dez. 2020.
SAIA, Luiz. Escultura popular brasileira. São Paulo: Gazeta, 1944.
Osvaldo
ResponderExcluirMuito importantes esses artigos sobre folkcomunicação, parabéns pelo trabalho constante.
Não sou crente, mas acho muito intrigante os relatos de graças alcançadas, ex-votos e essas manifestações de fé. Que força incrível tem a mente humana em sua vontade suprema, por outro lado, quanto mistério foge ao nosso poder de compreensão.
Abraço, Henrique
Osvaldo, belo texto sobre a Paraíba.
ResponderExcluirVocê esteve lá a tempo de salvar alguns
daqueles ex-votos.
O milagre do pesquisador.
Parabéns e obrigado por enviar.
Yuji
Pois é amigo Osvaldo, nós tivemos nossa infância marcada e acompanhada pela religiosidade, pela fé e pelas crenças populares. A Cruz da Menina nos acompanhou e, nós católicos fervorosos, acopanhamos a Cruz da Menina. Parabéns pelo trabalho minucioso, artístico e cultural, que é a sua marca registrada.
ResponderExcluirO pesquisador e o afeto... linguagens que dialogam. O imaginário da fé concretizado nesta troca.
ResponderExcluirÓtimo resgate das tradicionais crenças do nosso povo não só a cruz da menina como a do importante Inácio da da catingueira,escravo de Manuel Luiz e cantador de primeira como romano da mãe d'água
ResponderExcluirOsvaldo, seu trabalho como pesquisador comprometido com as manifestações da cultura popular é notável. Que enorme contribuição você nos oferece ao preservar peças ex-votivas, recuperar memórias e registrar histórias. Parabéns pelo esforço incansável de articular o saber popular e o saber acadêmico. Karina
ResponderExcluirOlá meu amigo Trigueiro. Como é bom ler você. Quero que saibas que utilizamos suas publicações junto aos nossos estudantes do Grupo de Estudos em Cultura Folclórica Aplicada e também nos estudos da disciplina Matrizes estéticas tradicionais na docência em Arte e na criação artística do nosso PPGArtes. Obrigada por tudo.
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