O
Centro de Estudos Jurídicos e Sociais – CEJUS, que tem como seu presidente Dr.
José Fernandes de Andrade, promoveu uma série de eventos no ano de 2017 em
comemoração ao centenário de nascimento de José Rodrigues de Carvalho, intelectual
paraibano de Alagoinha e, agora em 2018, fechando esse ciclo de eventos o CEJUS
publicou uma edição especial fac-similar do Cancioneiro do Norte da qual tive a honra de fazer o prefácio e
participar do seu lançamento que aconteceu no dia 8 de junho no auditório do
CEJUS.
Aqui transcrevo um pouco
do que disse sobre a grande obra do imortal da Academia Paraibana de Letras,
Rodrigues de Carvalho. O livro publicado pela política editorial
da CEJUS está à disposição de todos os interessados na sede do Centro de
Estudos Jurídicos e Sociais que fica localizado na Av. Rio Grande do Sul, nº
1411 Edifício Rio Tauhá, no Bairro dos Estados em João Pessoa – Paraíba/Brasil.
Prefácio
Cancioneiro do Norte
5ª Edição Fac-similar – 2018
Lançamento 5ª Ed fac-similar do Cancioneiro do Norte |
Quando
recebi o convite do Dr. José Fernandes de Andrade, Presidente do Centro de
Estudos Jurídicos e Sociais – CEJUS, para fazer o prefácio da quinta edição fac-similar
do Cancioneiro do Norte, fiquei com muitas dúvidas para aceitar essa nova
empreitada de tamanha responsabilidade. Tentei fugir do compromisso, mas foi
impossível recursar o convite do Dr. José Fernandes de Andrade. Depois de uma
longa conversa na sua sala no CEJUS fui convencido pela sua demonstração de carinho
e da paixão pela obra do conterrâneo de Alagoinha. Comentar uma obra de
Rodrigues de Carvalho não é uma tarefa fácil porque ele atuou em várias frentes
importantes da produção intelectual: no jurídico, na literatura, no magistério,
no folclore, na história, no jornalismo, na política e em tantas outras
atividades.
O
livro tem prefácios que praticamente esgotam quase tudo que se deseja dizer
sobre esta obra, do próprio autor na edição de 1928, do antropólogo e
folclorista Diégues Júnior na edição de 1967 e do professor Iveraldo Lucena na
edição de 1995. Fazer mais um prefácio seria dispensável da minha parte.
Portanto, fiz a opção por discorrer algumas considerações introdutórias sobre a
importância do Cancioneiro do Norte para os estudos e as pesquisas da cultura
popular e do folclore na atualidade, até porque o livro é uma obra
“imorredoura” como bem definhou o intelectual de Alagoinha.
Na
virada do século XIX para o século XX, com 37 anos, Rodrigues de Carvalho ao
publicar a primeira edição do Cancioneiro do Norte desperta interesses entre os
intelectuais brasileiros, quando ainda se ensaiavam os primeiros passos nos
estudos e nas pesquisas para a construção simbólica de uma identidade nacional
e uma das fontes eram as manifestações folclóricas. Mas, foi ao publicar a
segunda edição acrescentada com fatos novos do folclore que ele entra
definitivamente no ciclo dos importantes intelectuais brasileiros como: Nina
Rodrigues (1862-1906), Silvio Romero (1851-1914), Gustavo Barroso (1888-1959),
Mario de Andrade (1893-1945), Afrânio Peixoto (1876-1947), Gilberto Freyre
(1900-1987), Melo Morais (1844-1919), Leonardo Mota (1891-19480), Câmara
Cascudo (1898-1986), Ademar Vidal (1900-1986) e tantos outros. O Cancioneiro do
Norte passa a ser reconhecido como uma obra referência por Luiz da Câmara
Cascudo que a inclui na Antologia do Folclore Brasileiro: Séculos XIX-XX, os
estudiosos do Brasil, bibliografia e notas e Florival Seraine na Antologia do
Folclore Cearense.
Não
podemos esquecer que no momento da publicação do Cancioneiro do Norte, o Brasil
passava por grandes mudanças políticas, sociais e econômicas, que refletiam
significativamente na produção cultural do país, inclusive nas tradições
populares e no folclore. Nos primeiros anos do século XX a etnografia, a linguística
e a antropologia ganhavam espaço e tempo como campos de estudo e de pesquisa,
consequentemente se inicia uma sistematização científica na documentação das
tradições populares e do folclore, até então considerado um campo de estudo
desprovido de maiores critérios metodológicos.
Participou
do 1º Congresso Afro-Brasileiro - 1º CAB, realizado no Recife em novembro de
1934 como Presidente da Comissão de Folclore, coordenou a sessão de debates
sobre o Folclore/Arte; no artigo sobre “Aspecto da Influência Africana na
Formação Social do Brasil” publicado no segundo volume dos anais do 1º CAB,
Rodrigues de Carvalho cita uma das várias versões da lendária cantoria entre
Romano de Mãe d’Agua e Inácio da Catingueira, realizada na cidade de Patos em
1870 e publicada no Cancioneiro do Norte na primeira edição de 1903. Mais uma
vez aparece o pioneirismo do autor que inovou levando para o debate no 1º CAB
os desafios, as cantorias cujas temáticas eram quase desconhecidas entre os
estudiosos da época.
O
congresso presidido pelo sociólogo Gilberto Freyre reuniu estudiosos de diferentes
regiões, provocando polêmicas na jovem academia, na imprensa e divergências
ideológicas nos diferentes segmentos da intelectualidade brasileira. Os
debates, as conferências e as sessões temáticas no congresso sobre as questões
da negritude, da mestiçagem e do sincretismo despertaram novos olhares sobre as
tradições populares e do folclore, que passaram a ser estudados com maior rigor
científico. E como já dito anteriormente, não mais visto como motivo chufa, mas como uma perfeita noção do que seja o folclore e
a sua importância histórica para a construção simbólica de uma identidade
brasileira com bases teóricas lideradas por Gilberto Freyre.
Manuel
Diégues Júnior, no prefácio da edição comemorativa do centenário de nascimento
do autor do Cancioneiro do Norte, publicada em 1967, ressalta a importância de
Rodrigues de Carvalho e de suas obras ao afirmar:
Conheci
pessoalmente Rodrigues de Carvalho em novembro de 1934, por ocasião do
Congresso Afro-Brasileiro, do Recife; participamos, ele como Presidente, eu
como Secretário da Comissão de Folclore naquele Congresso que a iniciativa de
Gilberto Freire fizera reunir, com a colaboração de especialistas os mais
variados: médicos e bacharéis, professores e estudantes, folcloristas e
babalorixás. Já o conhecia então de nome; e de livro.
A
preocupação do autor em desenhar uma cartografia das manifestações folclóricas,
foi uma demonstração do seu pioneirismo com uma visão futurista sobre a
diversidade das manifestações culturais tradicionais e do folclore como: a
religiosidade, as festas, as danças, os folguedos, as canções, as poesias e
tantas outras expressões do povo. No percurso desenvolvido sobre a manifestação
folclórica do Bumba-Meu-Boi em diferentes regiões do país, Rodrigues de Carvalho,
pontua cada singularidade dessa manifestação na sua localidade, na cidade ou na
roça, assim como observou o espetáculo do Bumba-meu-boi: Pelas cidades o boi perde a sua graça primitiva; na roça, porém, a
coisa toma proporções de acontecimento notável. Nesta observação do Bumba-Meu-Boi
é como se o autor previsse o possível desenvolvimento deste folguedo em
transição do rural para o urbano. Ou seja, saindo da periferia para o grande
centro como um espetáculo híbrido, como acontecimento de grande repercussão
cultural.
No
Cancioneiro do Norte o autor chama atenção para os estudos das narrativas
populares, escritas ou orais, que se cruzam nos versos e nas palavras de
origens portuguesa, africana e indígena e que as definiu como narrativas de espécime de hibridismo. Rodrigues de
Carvalho registra vários exemplos de narrativas populares (contos, cantos,
lendas, fábulas, etc.), onde há o hibridismo dos três elementos já entremeados
de tantas outras influências, o que torna sem maiores significações estudar isoladamente
as suas origens. As observações, até fora do seu tempo, com relação ao que
seria o universo simbólico de construção da identidade nacional, com uma visão
mais ampla sobre a influência das diversidades culturais brasileiras, de certa
forma, divergiam dos paradigmas predominantes na época.
Mais
uma vez recorro ao magnifico prefácio de Diégues Júnior ao afirmar que:
O hibridismo
etnológico, referido por Rodrigues de Carvalho, traduz-se justamente nesta
mistura em que, embora se possa indicar a fonte originária, não se pode
estabelecer a sua exclusividade. É com absoluta razão, antecipando-se aos
modernos estudos de regionalização cultural do Brasil, que o velho folclorista
de 1903 procurava caracterizar as produções folclóricas por zona, e não por
etnia; o que ele via na zona, aliás numa antecipação a modernos estudos, era
justamente o elemento cultural em contato, produzindo pela fusão ou absorção
dos elementos originais novos elementos, marcados pela feição do ambiente.
Portanto,
não só foi um dos pioneiros dos estudos do folclore como antecipou, nas
primeiras décadas do século XX, teorias atuais dos estudos latino-americanos,
quando emprega o termo hibridismo, e
não exclusivamente os termos de sincretismo
ou mestiçagem para definir os amplos
processos de intercâmbios das diversidades culturais tradicionais. O primeiro
termo por se referir quase sempre às questões raciais e o segundo quase sempre às
questões religiosas.
Rodrigues
de Carvalho faz o seguinte questionamento: Como
afirmar se o canto A de origem
europeia, a canção B indiana, a
chula C africana, se o meio em que
se recolhem tais produções é o resultado de um manifesto hibridismo etnológico?
Para
justificar o uso do termo “hibridismo etnológico”, o autor ressalta a
importância dos estudos comparativos dos valores culturais que constituem as
tradições populares brasileiras, que atravessaram centenas de civilizações ao
longo dos anos, de geração em geração e foram adaptando-se aos nossos costumes,
onde a tradição se transfunde ao
longo do tempo.
Faço
aqui um outro questionamento: talvez Rodrigues de Carvalho tenha empregado o
termo hibridismo, já no início do
século XX, antevendo os processos de dinamizações das culturas tradicionais e
das culturas contemporâneas tão debatidas, tão polemizadas nos estudos e nas
pesquisas atuais entre culturas midiáticas e culturas populares. Evidentemente
levando em consideração a época que foi publicada a primeira e a segunda edição
aumentada do Cancioneiro do Norte.
Rodrigues
de Carvalho teve a preocupação de registrar os problemas das secas, do ciclo do
cangaço e de outras temáticas socioculturais que eram motes nas cantorias, nos
versos dos poetas populares e nos enredos dos folguedos para demonstrar que não
existia uma tradição cultural, mas uma diversidade de manifestações tradicionais
que se espalham nas diferentes regiões do território brasileiro e que continuam
atualizando-se. Como ele mesmo diz no final do seu prefácio: Este livro não representa uma ambição
literária, nem aspira à glória de obra limpa; ele significa um esforço por bem da
intelectualidade anônima dos filhos do Norte.
Ao
reeditar Cancioneiro do Norte depois da publicação em 1995 pelo Conselho
Estadual de Cultura, o CEJUS, não só presta uma justa homenagem ao seu autor
como também possibilita que novas gerações possam conhecer o trabalho pioneiro
dos estudos e das pesquisas desenvolvidas por Rodrigues de Carvalho na virada
do século XIX para o século XX.
É importante dizer
que a edição fac-similar do Cancioneiro do Norte, que agora em 2018 é publicada
pelo CEJUS, continua atual como referência bibliográfica, para quem deseja
conhecer os primeiros registros do nosso folclore e realizar estudos
comparativos sobre os hibridismos etnológicos na atualidade.